30 junho 2008

O homem.com medo de si próprio (1)



Introdução

Há muito que a tradição foi destronada pelo novo, pelo nunca vivido ou experimentado. De um momento para o outro, são milénios de história que ficam para trás e, reduzido agora à incessante projecção da novidade, o presente quase deixa de existir. Sobrevive, claro, mas já não como verdadeiro presente porque é, cada vez mais, mera versão tecnológica de um futuro antecipado. Já não precisamos, pois, de recorrer a profecias ou à ficção para poder imaginar os perigos que nos esperam se não soubermos controlar o nosso constitutivo fascínio pela técnica dentro de indeclináveis limites éticos.

São perigos que nos espreitam, que acompanham cada invenção humana, cada passo para o mundo de amanhã. São perigos ou riscos que urge definir se vale a pena correr. Importa por isso reanalizar não só a relação que o homem vem mantendo com a técnica como o proeminente lugar de que esta desfruta na sociedade contemporânea, com destaque para a sua (desmesurada?) autonomia decisória. Esta é, como se sabe, uma das preocupações centrais no pensamento de Arnold Gehlen, que aqui seguirei de perto, para quem a ideologia técnica, ao invadir a cultura, passou a modelar a consciência humana em domínios da vida que não se lhe ajustam. Chegou-se assim à situação paradoxal em que o homem se encontra agora, ao ter medo de si próprio, situação que, em última instância, aponta para a necessidade de se submeter o chamado progresso técnico a um mais apertado crivo ético.

Pelo caminho, confrontar-nos-emos com a falência de todas as éticas tradicionais, perante a originalidade e dimensão dos quase ilimitados poderes técnicos de que o homem só muito recentemente passou a dispor. O pensamento ético, que Isaiah Berlin associa à pesquisa de “convicções quanto ao modo como a vida deve ser vivida” é, porém, absolutamente imprescindível à configuração do humano. Não se estranhe, então, que a impossibilidade de confiarmos no critério da tecnociência para decidir sobre projectos humanos, assim como a necessidade de um cada vez maior policiamento do poder técnico e a adopção de um novo imperativo categórico (o de Hans Jonas), surjam como algumas das possíveis respostas às crescentes preocupações pelas intervenções técnicas potencialmente mais perigosas, como são aquelas em que o homem figura como objecto da própria tecnologia que criou.

No final, veremos ainda como as três principais interpretações sócio-filosóficas a que os próprios cientistas vêm submetendo o rumo do actual desenvolvimento técnico conduzem, afinal, a um ponto comum: a urgência de um alargado consenso quanto aos riscos que a humanidade está disposta a correr. Riscos de que todos temos não só legitimidade para prever, mas também a responsabilidade de prevenir.

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in Américo de Sousa (2004), O homem.com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 9-10

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Passos de retórica

Logo a abrir o Congresso do PSD, Manuela Ferreira Leite fez o que pôde para se ver livre de toda a retórica, avisando que não tencionava perder tempo a esclarecer pensamentos, nem estratégias que lhe fossem atribuídas. O que não contava, por certo, é que Passos Coelho a viesse interpelar com aquela que foi, talvez, a melhor tirada retórica do Congresso:

"Não tenha medo de dizer o que pensa. Nem o partido, nem o país têm obrigação de adivinhar"

25 junho 2008

Assalto à imaginação

Já entreguei as chaves do banco ao funcionário que as perdeu. Confessou não ter ganho para o susto. Mas quem não ia ganhando para o susto era eu, principalmente a partir do momento em que comecei a imaginar o que me poderia acontecer se, por azar, o banco fosse assaltado enquanto as chaves estavam ainda em meu poder. Com a Margarida Rebelo Pinto a afirmar a pés juntos que não há coincidências, quem me garante que iriam acreditar mais em mim do que no assaltante?

24 junho 2008

Um banco dependente de mim

Será insólito mas nem por isso menos verdadeiro: há mais de 24 horas que tenho um banco na minha mão. Ou, mais exactamente, que tenho em meu poder as chaves de um banco. Não é, afinal, quase a mesma coisa? Estou a olhar para elas, para as chaves entrelaçadas, de onde sobressaem duas em cruz, ambas sofisticadamente recortadas: uma é a da porta exterior, a outra é a da porta interior, a chamada porta de segurança. De segurança, repito, por muito que o termo me faça sorrir, já que estando a chave comigo, a dita segurança de mim quase inteiramente depende. Há mais de 24 horas. E assim vai continuar, até amanhã de manhã, altura em que me apresentarei no balcão do respectivo banco para devolver o insólito achado: as chaves que um funcionário do banco deixou, por esquecimento, penduradas na fechadura da porta que dá para a garagem colectiva do prédio. Desconhecendo o nome, a morada ou n.º de telefone do funcionário, outro remédio não tive senão o de me "oferecer" como fiel depositário. E foi assim que, contra o costume e pela primeira vez na minha vida, senti que foi o banco a ficar dependente de mim.

A olhar para ontem

De quem está muito absorto, distraído ou preocupado com o que não devia em dado momento, costuma dizer-se que "está a olhar para ontem". No meu caso, porém, tenho talvez uma boa desculpa. É que estou a olhar para ontem mas não foi hoje que me distraí. Foi ontem que o Retórica fez 5 anos.

A política à luz da retórica

O "fenómeno Obama" (é assim que muitos analistas, espantados, lhe chamam) tem sido, antes de mais, um grande fenómeno verbal. O senador afro-americano do Illinois conseguiu voltar a dar à palavra o papel que ela outrora teve na política. Há anos, o poeta russo Joseph Brodsky disse que, no nosso tempo, a crise da política devia ser medida pela decadência da retórica política e o desdém perante ela. Quando De Gaulle perguntou aos franceses "querem ir dormir ou salvar a França?"; quando Churchill prometeu aos ingleses "sangue, suor e lágrimas"; quando Kennedy afirmou perante a Humanidade "somos todos berlinenses" - aqueles que os ouviram responderam com um estremecimento, um ardor, um impulso, um ímpeto. Essa retórica, "arte do discurso que persuade", tem as suas leis, que, com transtornos e metamorfoses, vinham da Antiguidade Clássica. Marc Fumaroli mostrou como a retórica é o espelho de onde uma sociedade se olha. E autores como Hannah Arendt, Barthes, Foucault, Pasolini ou Todorov escreveram sobre a relação entre retórica e democracia, oratória e totalitarismo, discurso e verdade, palavra e violência.
A estética da grande linguagem pública era a de um jogo verbal feito de setas e de alvos, de passados e de futuros, de claros e de escuros, de afirmações e de negações, de proximidades e de distâncias, de defesas e de ataques, de directas e de indirectas. Também de realidade e de imaginação, de rapidez e de lentidão, de abstracto e de concreto, do que é de cada um e do que é de todos. Depois, chegou à política a "idade da técnica" e a "era da massificação". Com a ascensão vertical dos "técnicos", dos "gestores", dos "especialistas", a linguagem política passou a ser "slogan", meta, número, "power point" e "sound byte". Rompeu-se o pacto entre a palavra, as pessoas e o mundo. Já ninguém confia nem nas promessas, nem em quem as reitera. Na era da suspeita, cada político passou a cumprir o paradoxo do mentiroso: só se acredita nele quando confessa que mentiu.
Mas "as palavras são acções", diz Wittgenstein. Nesta campanha verbal, Obama reabilitou a retórica política, dando-lhe um novo cuidado e uma nova apropriação. Foi esse o ponto de aplicação em que firmou a alavanca do seu triunfo. Ouvi-lo é voltar a ler a Retórica de Aristóteles. Ele convence porque argumenta (logos), porque emociona (pathos) e porque há um "eu" que diz "vós" e é reconhecido (ethos).


José Manuel dos Santos
"Actual",
Expresso, 21 Jun 2008

23 junho 2008

A política à sombra da retórica

15 junho 2008

O preço da continência

Más entradas para a nova liderança. Quando os camionistas pretendiam assustar o Governo do PS, foi o PSD que ficou sem fala. Credibilidade? Ah sim, claro, é preciso credibilidade. Muita credibilidade. Mas não consta que a credibilidade seja surda. Muito menos, muda.

13 junho 2008

Verdade retórica

A verdade maltrata as pessoas.

Robert Musil
O homem sem qualidades II, Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 168

Não existe como que uma espécie de delicadeza de alma na figuratividade, um respeito que permite evitar sem combater, recusar sem negar? Tudo leva a crer que a manipulação consentida assenta numa dupla linguagem que não engana, e mesmo de que se tem necessidade para diferir a decisão própria sem ter de enfrentar directamente o outro. Um grau mais de liberdade, se se quiser, na qual só os ingénuos verão uma traição à verdade una e indivisível, de que os receptores da mensagem seriam vítimas involuntárias.

Michel Meyer

"As bases da retórica", in Carrilho, M. (org.), Retórica e Comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 69


Duas citações para ilustrar a mesma verdade retórica. Uma verdade que sem ofender o seu estatuto metafísico, surge tematizada, sobretudo, do ponto de vista comunicacional. E o problema dos problemas começa precisamente aqui. Que lugar ocupa a verdade na comunicação? Bastará falar verdade para comunicar adequadamente? No romance de Musil, quando Agathe diz ao irmão Ulrich que "a verdade maltrata as pessoas", é ainda a fragilidade da nossa maquinaria perceptiva que é posta em questão. Porque a verdade não deveria, logicamente, perturbar-nos, aborrecer-nos e, no entanto, tantas vezes magoa e faz sofrer. A verdade maltrata as pessoas, especialmente quando é comunicada sem o cuidado prévio de antecipar a reacção daqueles a quem nos dirigimos. Daí que a figuratividade surja em Meyer como uma “espécie de delicadeza de alma” , uma dupla linguagem que evita o enfrentamento do outro, o exercício de uma liberdade de dizer sem, com isso, trair a verdade. Uma verdade, bem entendido, que não maltrate as pessoas.

09 junho 2008

Ribeira sem luz no fundo do tunel


É deprimente o actual estado do tunel da Ribeira. As paredes, de tão sujas, espelham, por si só, um manifesto desleixo municipal em matéria de limpeza e higiene. Porque sendo revestidas de azulejos, bastariam umas tantas mangueiradas de água com alguma regularidade para que o túnel ficasse limpo e bonito, mais de harmonia com a deslumbrante beleza para que dá acesso, com destaque para a Ponte D. Luís I, o rio Douro, a própria Ribeira e, em frente mas já na outra margem, o lindíssimo Mosteiro da Serra do Pilar.

Julgo saber que o Dr. Rui Rio tem motivos para não querer vir muitas vezes a Gaia e isso, naturalmente, reduz a probabilidade de passar pelo túnel assim como também poderá estar a recorrer mais ao Metro que, como se sabe, só circula pelo tabuleiro superior. Em qualquer caso, é-me difícil imaginar que o Presidente da Câmara do Porto não saiba as condições em que se apresenta o túnel, seja por observação directa, seja por indicação dos respectivos serviços técnicos municipais.

Ainda assim, aqui fica o reparo para acabar de vez não só com o eventual desconhecimento mas também com a escuridão do túnel, já que à sua deficiente iluminação se junta agora uma quantidade muito apreciável de lâmpadas fundidas ou apagadas que a câmara persiste em não reparar ou substituir. É que, como a foto documenta, está cada vez mais difícil ver a luz no fundo do tunel.

05 junho 2008

A ponte iluminada

Ponte D. Luís I
04.06.2008
23h35
Sempre bonita e imponente.