30 outubro 2003

Retórica & Artifícios (2)

Caro Pedro Caeiro,

Tenho muito prazer em trocar ideias consigo e estou-lhe muito grato por dar continuidade ao que simpaticamente designou de “agradável conversa”. Embora sem a pretensão de corresponder totalmente à sua expectativa, aqui estou - hoje sim - a tentar responder ao teor do seu último post.

Sobre os artifícios retóricos. Deixe-me dizer-lhe, Pedro, que em nenhum momento pressupus uma conotação pejorativa no uso que fez do termo "artifício". A prova é que procurei “impessoalizar” (repito) o comentário que fiz com o único propósito de afastar a equivocidade da referida expressão. É que, a retórica, como sabe, continua a ser associada, na maioria das vezes, a um conjunto de artifícios ou truques discursivos, mais ou menos floreados, mais ou menos enganosos, onde tudo vale para se conseguir a adesão do auditório. E neste contexto, falar de “artifícios retóricos” poderia tornar-se tão equívoco como falar, por exemplo, de “floreados retóricos”. Quem desconhece que, regra geral, estas duas expressões remetem para obscuros estratagemas e linguagens rebuscadas (que de modo algum se inscrevem na matriz disciplinar da retórica)?

Sobre a linguagem e as figuras de estilo. Aqui não compreendi a intenção argumentativa do Pedro, já que:

1) não assimilei os artifícios retóricos aos que se empregam nos "usos de linguagem" comuns

2) não considerei o artifício retórico apenas na estrita medida em que toda a linguagem é artifício ou dispositivo.

3) e como aliás, já expliquei, as figuras de estilo não comportam necessariamente "um elemento dinâmico (dado pelo fim persuasivo) que exorbita da linguagem enquanto mero aparelho de comunicação).


E, como se sabe, sem dito não pode haver contradito.

Sobre o argumentum ad hominem. O facto do emissor desconhecer, no momento da declaração, a identidade concreta de eventuais opositores não “afasta a possibilidade de vermos aí um argumento ad hominem”. Recordemos que um argumento é “ad hominem” muito simplesmente porque ataca a pessoa em vez de debater as razões para aceitar ou não a conclusão (ideia, proposta ou solução). É esse o critério da definição. Uma ideia, qualquer ideia, há-de ter valor ou desvalor em si mesma. Ora isso independe das características ou atributos pessoais de quem a possui ou defende.

É por isso que chamar troglodita a alguém representa um caso particular de ataque à pessoa (ad hominem) seja ela quem for, presente ou ausente, determinada ou indeterminada, real ou potencial. O procedimento é claramente erístico (vencer por vencer, vergar o adversário) e não retórico (vencer com razões, respeitar o oponente) e ocupa, pode dizer-se, um lugar central no quadro das chamadas falácias de “fugir ao assunto”.

Quanto ao cerne do problema. O PC tinha inicialmente colocado a hipótese de “adjectivar possíveis objectores de trogloditas” com o único intuito (expresso) de esvaziar previamente o efeito do eventual uso do mesmo termo contra si. Veio agora acrescentar-lhe uma segunda intenção: a de desvalorizar também a eventual linha de argumentação contrária. Mas este aditamento não só não altera o essencial da questão como tem até a vantagem de vir dar mais visibilidade ao que realmente está em jogo. Ou seja:

- O orador recorre a um insulto (estou a supor que o concreto uso do termo “troglogita” nao seja eticamente neutro, nem, muito menos, elogioso) com o duplo objectivo de “atenuar” os efeitos de igual tratamento por parte dos discordantes e de “descentrar” a discussão para o aspecto lateral de se saber “quem é o troglodita”.

Com isto o que é que fica claro? Fica claro que ou o orador está de “má fé” discursiva (tentando fazer aprovar uma ideia que sabe de antemão ser indefensável) ou tem o duplo receio de que:

1) os seus argumentos não se mostrem convincentes para alguns opositores

2) no caso dos opositores reagirem, pela via do insulto ou pela via de uma argumentação inconsistente, não disponha de competência argumentativa ou de razões válidas para os desqualificar.


Vai daí, recorre ao “golpe baixo” do já citado argumento ad hominem esperando desse modo colher os dividendos a que não chegaria pela simples apresentação das suas razões.

É caso para dizer que talvez não precisasse de tanto se o auditório fosse cego, surdo e mudo. Mas em condições normais, essa “habilidade” não passaria despercebida a quem seguisse o debate. Pelo que à rejeição ética (e não apenas deontológica como PC sugere no final do seu post) deste procedimento, haverá que somar ainda a sua mais que provável ineficácia.

O Pedro parece recear que eu não tenha captado bem o “cerne do problema” quando vinca que não se trata apenas de “insultar antes de ser insultado” e sim de “prevenir um ataque muitro concreto”. Mas fique certo que explicou muito bem a sua questão. Foi, por isso, sempre muito claro, também para mim, que, naturalmente, o verdadeiro objectivo não seria insultar, seria prevenir. Mas o que se passa é que seria prevenir à custa de um insulto. É certo que de um insulto como meio e não como fim. Mas ainda insulto. Coisa que só encontraria cobertura num regime retórico de “olho por olho, dente por dente” em que o orador se encontrasse legitimidado para ofender os seus adversários, à primeira suspeita de que pudesse vir a ser ofendido. Enfim, um regime, esse sim, mais próprio de verdadeiros trogloditas.

O problema não é portanto o recurso à prolepse, isto é, à preventiva antecipação do argumento do adversário. Por exemplo, nada haveria a opôr se com a mesma finalidade o orador , em vez de apelidar de trogloditas todos os eventuais discordantes, argumentasse qualquer coisa de parecido com isto:

“ poderão alguns chamar-me de troglodita para assim tentarem desvalorizar o que digo; só não conseguirão vencer a força das razões que acabei de apresentar”

Repare-se como esta antecipação de um presumível ataque se limita a evocar e refutar a sua mera possibilidade. É uma estratégia legítima. É uma prolepse. É uma antecipação evocativa do possível argumento do adversário. Não é a pura imitação do que poderá ser o seu argumento ou ofensa, tal como acontece no nosso caso do “troglodita”. Logo, Pedro Caeiro, o procedimento que em boa hora lançou para a nossa conversa ou diálogo é, para todos os efeitos, a prolepse de um argumento ad hominem.

Quanto ao termo troglodita ser ou nao insultoso, aí teremos mesmo que nos decidir: ou é um insulto... ou não faria qualquer sentido estar preocupado com a hipótese dos eventuais discordantes lhe virem a chamar o mesmo nome a si. Não acha? Não me diga que vamos ter que reformular toda a questão... (risos)