07 abril 2008

Não gosto de andar de avião

Já voei alguma coisa e continuo a voar. Mas confesso que nunca tive lá em cima a mesma sensação de segurança que tenho cá em baixo, por exemplo, quando viajo de carro. Ao princípio diziam-me que isso era natural nas primeiras viagens mas que passaria com o tempo. Resolvi então afrontar o "monstro": fiz Porto-Lisboa-Porto; Lisboa-Faro-Lisboa; Porto-Nova Iorque-Porto; Porto-Miami-Porto; Porto-Luanda-Porto; Porto-Madrid-Paris-Zurique-Milão-Munique-Amesterdão; Amesterdão-Dubai-Amesterdão. Voei para mais um bom punhado de destinos. E nada. Tudo continua igual: não gosto de andar de avião.

Medo de voar ?

O mais engraçado é que nem se pode dizer que tenha medo de voar (ok, riam-se), ao menos naquele sentido irracional de quem não consegue embarcar ou de quem faz das tripas coração e embarca mas passa o voo a certificar-se minuto a minuto de que o aparelho ainda não caiu. Não. Estou muito longe de me aproximar do avião como quem vai para a cadeira eléctrica e uma vez lá dentro, não sou nada dado a maus pressentimentos, nem sofro de qualquer tipo de achaques ou falta de ar. Antes pelo contrário, como passo a descrever.

Um “passageiro normal”

"Amarrado" ao assento ou passeando pela aeronave, represento a preceito o meu papel, comportando-me como um passageiro "normal", que é como imagino que aquela comunidade de circunstância (a do mesmo voo) espera que eu me comporte. Nada de mais, só um pouco de teatro social para, na esteira do nosso Primeiro-Ministro, disfarçar os meus estados de alma. Creio que não me tenho saído nada mal dessa "representação". Ao menos aí, mostro-me à altura nas alturas, já que dentro do bicharoco sou apenas mais um a "transmitir" aos outros a ideia de que a viagem é uma coisa trivial e até relaxante. Isso, sim, diverte-me, só de pensar em quantos mais irão ali, calados que nem um rato, a fazerem a mesma figurinha que eu.

O argumento estatístico da perigosidade

Ao que não acho muita graça é à comparação do risco de acidente lá em cima com o risco de acidente cá em baixo que é o que faz o tão matraqueado argumento estatístico, ao partir do princípio de que conduzir um carro é mais perigoso do que andar de avião. Embora a versão mais popularizada deste argumento se apoie apenas na ideia geral e muito intuitiva de que se dão bastante menos acidentes de avião do que acidentes de carro, há quem chegue a quantificar essa comparação, o que, naturalmente, dá ao argumento uma aparência ainda mais persuasiva. Será o caso do matemático Nuno Crato quando defende que o carro é 65 vezes mais perigoso do que o avião, como refere João Pereira Coutinho na sua penúltima crónica na Única/Expresso. Coutinho que, por sinal, discorda desta visão calculista de encarar o medo de andar de avião pois não é o saber que resolve a angústia do condenado e, acrescenta ainda, "como diria Henry James, mais forte do que a matemática é a imaginação para o desastre". Não posso estar mais de acordo. Por mais dignidade científica que se reconheça, como se reconhece, à matemática, não se pode reduzir a explicação do aparecimento do medo (seja do que for) a uma mera expressão quantitativa. Basta lembrar que não tem medo quem quer pois, por natureza, o medo não deriva da vontade, não resulta de uma decisão. Logo, saber que andar de carro é 65 vezes mais perigoso do que andar de avião pode não ser suficiente para fazer desaparecer o medo.

A perda máxima provável

Sobra ainda o caso daqueles que (como eu?) não tendo propriamente medo de andar de avião também não podem afirmar que algum dia foram felizes durante um voo. A minha hipótese é a de que o desconforto, chamemos-lhe assim, seja aqui de carácter acentuadamente racional. Porque do que duvido é do rigor e da adequação deste cálculo estatístico que a toda a hora me é exibido como argumento, razão suficiente ou evidência das evidências de que “o avião é o meio de transporte mais seguro”. Primeiro, porque se há mais acidentes de carro ou se o acidente de carro é muito mais provável do que o acidente de avião (o que não é bem a mesma coisa), a verdade é que da esmagadora maioria dos acidentes de carro ou não resultam sequer feridos, ou resultam apenas feridos sem gravidade ou feridos com gravidade, enquanto que num desastre de avião a probabilidade de morrerem todos os passageiros e respectiva tripulação é, como se sabe, praticamente de 100%. Daí que a “perda máxima provável” no avião seja infinitamente superior à “perda máxima provável” no carro. Não será então racional, ao menos deste ponto de vista, considerar o avião mais perigoso do que o carro? Em segundo lugar, será preciso definir previamente o que se quer dizer com a expressão “mais perigoso”. Por outras palavras, o que significa afirmar que a condução de um carro é 65 vezes mais perigosa do que andar de avião?

1) Que há 65 vezes mais acidentes de carro do que acidentes de avião?

2) Que os acidentes de carro são 65 vezes mais graves do que os acidentes de avião?

3) Que a probabilidade de ocorrer um acidente de carro é 65 vezes maior do que a de ocorrer um acidente de avião?

Sendo obviamente de rejeitar a ideia de que um maior número de acidentes é uma prova automática de maior perigosidade, seria quase uma obra de caridade se o professor Nuno Crato ou qualquer outro credenciado defensor do argumento estatístico, pudesse explicar, passo a passo, como se chega à conclusão de que a perigosidade do carro é 65 vezes maior do que a do avião. Quem sabe se o meu desconforto tem cura?