30 setembro 2003

Reflexos de retórica (4)

A TECNOLOGIZAÇÃO DO PEITHOS

De um ponto de vista operativo, a técnica não é, afinal, mais do que um determinado modo de fazer ou agir. Nuns casos, recorrendo a máquinas, a instrumentos, noutros, seguindo um conjunto de procedimentos ou regras. Pode-se assim falar tanto da técnica de fabricar sapatos como da técnica para dispor os livros numa biblioteca. Duas tarefas concretamente tão diferenciadas mas ainda assim ilustrativas do que é uma técnica. A primeira, técnica de produção; a segunda, técnica de arquivo ou de ordenação. E num plano mais abstracto, falaríamos mesmo de uma técnica de pensar ou de uma “técnica das ideias”, tal como o fazem Armando Plebe e Pietro Emanuele (*). Em qualquer caso, sempre um modo de fazer, de seguir certos passos (e não outros) quando se pretende atingir determinado fim.

Técnica. Uma noção que remete para a economia do esforço, para a eficácia ou optimização do resultado, mas também para a comodidade, para o agrado, para o bem estar. A constatação, por isso, já não surpreende: todos recorremos a técnicas. A começar pelas técnicas de escrever e de falar, às quais cometemos a ambiciosa missão de fazer ver aos outros o que pensamos e lhes queremos comunicar. É, portanto, natural que, quando o interesse seja o de fazer partilhar uma opinião ou induzir a um certo comportamento, a retórica surja como técnica de eleição. Como técnica de persuadir discursivamente.

Peithos. O Peithos significa, como se sabe, persuasão. E esta tem a ver com uma infindável série de actos ou situações: induzir ou ser induzido por alguém a acreditar em algo (ou induzir-se a si próprio); fazer amigos; obter um favor; levar (ou ser levado por) alguém a praticar uma certa acção, ter confiança, etc. Há, contudo, muitas maneiras de chegar à persuasão. Pode-se persuadir pelo dinheiro, pelo amor, pela força física, pelo poder, pela ameaça, pela promessa. Pode-se até persuadir pela guerra (para garantir a paz). Não é, porém, de nenhum destes tipos de persuasão que trata a retórica. À retórica diz respeito apenas a chamada persuasão discursiva, ou seja, a que tem origem e se exerce na (e pela) palavra. Faz todo o sentido, por isso, afirmar que a retórica se apoia na força do dizer. Mas mais sentido fará ainda reconhecê-la como técnica ou arte de pensar. Porque não há retórica sem reflexão, sem argumentos, sem razões. E, muito menos, sem o livre exame e aprovação (ou não) do respectivo auditório.

A expressão "tecnologização do peithos" é, pois, muito sugestiva para caracterizar o que se passa na retórica especialmente se articulada com as três noções prévias seguintes:

1) A retórica, visando a persuasão, não se esgota nela. Toda a situação retórica se funda, antes de mais, num processo de comunicação. O que dá identidade retórica a este processo de comunicação é o facto de ele visar determinados efeitos persuasivos. E neste entendimento, a retórica estará para o acto (de comunicar) assim como a persuasão para o efeito (da comunicação).

2) Dizer que a retórica assenta numa tecnologização da persuasão pode eventualmente sugerir que a sua tónica seja a exploração do lado emocional do auditório. Quando não é disso que se trata. Do que se trata é que a retórica lida com o concreto, com a realidade. E a realidade (ao que parece, para desconsolo de alguns), é que os seres humanos são, de facto, criaturas mais ou menos apaixonadas, cujos pensamentos e decisões podem ser influenciados por apelos à emoção (pathos), como o são também pela credibilidade do escritor ou orador (ethos) e, principalmente, pelas razões por eles invocadas (logos).

3) A "tecnologização do peithos” terá, por isso, de ser entendida como operando de modo abrangente e repartido pela tríade ethos-logos–pathos (carácter-razão-emoção). Desde logo, porque não é humanamente possível transmitir ou receber uma mensagem puramente objectiva, puramente factual, puramente lógica. É verdade que o discurso retórico se estrutura logicamente e que, consistindo, sobretudo, numa apresentação das razões em favor de uma tese ou conclusão, apela, necessariamente, para o raciocínio lógico do auditório. Mas quem estaria disposto a ouvir um “sermão” carregado de certeza e verdade, se o orador não lhe inspirasse confiança ou se a forma e o conteúdo do discurso passassem totalmente ao lado das suas necessidades, dos seus interesses, dos seus desejos, dos seus afectos ou emoções?

(*) Plebe, A. e Emanuele, P. (1992), Manual de Retórica, São Paulo: Martins Fontes, p. 9