04 julho 2010

O tempo que pára dentro de nós

"Estamos a destruir o valor do acto intelectual" - diz Alberto Manguel, autor de "Uma História da Leitura", best-seller mundial, na entrevista que concedeu a Ana Gerschenfeld (de quem sou fã) para o Ipsilon da passada sexta-feira.

Confesso que me ficaram os olhos na experiência de vida que o autor repartiu pelos quatro cantos do mundo (Argentina, Israel, Taiti, Canadá, França) e no pormenor excêntrico de ter tido uma "aia checa de língua alemã"... que falava inglês.
Mas não é a sua obra (que ainda desconheço) que o traz aqui nem, aliás, nada que lhe pertença. O que o traz aqui é uma coisa muita minha. É a minha total surpresa por encontrar nas páginas do Público um autor tão viajado, que viveu largos períodos de tempo em diferentes culturas e, não obstante, quando a entrevista se dirige para o novo, para o futuro, para a electrónica e para a Internet, para o computador e para o ebook, tudo o que se lê do senhor é uma descabelada rejeição dos novos meios e formatos digitais (que são já hoje imprescindíveis na produção dos próprios livros que escreve, de papel, claro). Da entrevista trago estas quatro pérolas:
"O ebook (...) não é mais do que 'uma tábua de argila com mais memória'. (...)
O que está a perder terreno é a inteligência. Estamos a tornar-nos mais estúpidos porque vivemos numa sociedade na qual temos de ser consumidores para que essa sociedade sobreviva. E para ser consumidor, é preciso ser estúpido, porque uma pessoa inteligente nunca gastaria 300 euros num par de calças de ganga rasgadas?"
"Se quiser apenas ler um texto, conhecer um texto, tanto me faz que seja num ecrã ou num livro electrónico. Mas se quiser ler como costumo ler - eu, Àlberto MangueI -, fazendo anotações nas margens, passando da página 74 para a página 32 para depois ir espreitar a página 3, não posso fazer isso com um livro electrónico - ou talvez possa, mas é mais complicado. A mim o ebook não me é útil- mas percebo perfeitamente que o seja para outros."
"o problema com a Internet é que nos dá a ilusão de possuirmos toda a informação que contém. Mas o facto de essa informação existir não significa que seja nossa. Temos de saber procurá-la, saber se é fiável ou não, saber utilizar as associações que fazemos. Podemos brincar com a Internet dias a fio, à procura de anedotas, de bocados de informação recôndita, etc. É óptimo, mas tem de haver uma actividade mental capaz de incorporar, destilar, recriar essa informação. Ora, um dos grandes problemas actuais dos bibliotecários é que os jovens que chegam às bibliotecas, e que estão habituados a utilizar a Internet para fazer uma espécie de colagem de informação, não sabem ler. Não sabem percorrer um texto para extrair aquilo que precisam, repensá-lo, dizê-lo com as suas próprias palavras, comentá-lo, associá-lo ou resumi-lo - e sobre tudo, memorizá-lo -, actividades que fazem parte da leitura enquanto acto criativo. Estão habituados à ideia de que, como isso está lá e está acessível, já é deles. Não é assim."
"A escola não tem culpa, é a nossa so­ciedade que é culpada. (...) Estamos a transformar os centros de ensino em centros de trei­no. Estamos a criar escravos. Somos a primeira sociedade que entrega os seus filhos à escravidão, sem qualquer sentimento de culpa."
E informa a entrevistadora:
"Não usa telemóvel, nem internet, não tem email. Não os acha úteis."
Que dizer? Talvez, nada. Só tenho pena que Alberto Manguel não tenha falado mais do que sabe (escrever) e menos, muito menos, do que, pelos vistos, lhe está a passar completamente ao lado (a tecnologia). Ao que chegamos quando o tempo pára dentro de nós.