A ambiguidade é um erro?
Respondendo à questão em título, que me foi amavelmente colocada por Carla do Bomba Inteligente:
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Antes de mais, notemos como a pergunta já anuncia a resposta, na medida em que, ela mesma - a pergunta - mergulha numa certa ambiguidade. Ou seja: o que é a ambiguidade? o que é um erro? A pergunta não o diz. É, ela própria, ambígua. Ao nível compreensivo, oferece pouco. Mas exige ou permite muito. Precisamente porque se pretende curta e incisiva. Como convém ao diálogo, tal como já Sócrates defendia.
Claro que se poderia optar por fazer a mesma pergunta de forma mais pormenorizada inflacionando-a com longas definições e delimitações dos dois principais conceitos que a integram, para assim reduzir o mais possível a margem de incerteza interpretativa. Mas, como se sabe, não dispomos de memória e atenção ilimitadas e, por isso, ou o perguntador se apressa a concluir a pergunta ou corre o risco de já não ter ninguém a lê-lo.
O segredo (e a dificuldade) de quem pergunta, será, pois, o de saber encontrar, para cada situação, para cada tema, para cada leitor (alvo), a mais eficaz combinatória entre os princípios da compreensibilidade e da economia discursiva. Podemos pois tentar reduzir a ambiguidade quando queremos dizer apenas o que dizemos. Mas nunca, anulá-la. Deste ponto de vista, a ambiguidade não é um erro. É mesmo a principal "marca" da própria linguagem natural que, precisamente por não ser rigorosa e unívoca, se vê investida de uma riqueza e plasticidade comunicacional sem limites.
É que falamos até aqui apenas de uma ambiguidade involuntária. De uma ambiguidade que, digamos assim, fatalmente se interpõe sempre entre escritor e leitor na produção do sentido final de cada enunciado. Mas que dizer da ambiguidade voluntária? Será um erro recorrer expressamente à ambiguidade para comunicar uma ideia ou um estado de alma? É óbvio que não. Consideremos um caso de superior recurso à ambiguidade: a ironia.
Recordemos, por exemplo, a famosa "picardia" entre Bernard Shaw e Wiston Churchill, quando o primeiro, prestes a estrear uma das suas peças, envia dois bilhetes-convite a Churchill com a seguinte indicação: "Um para V. Ex.ª e outro para um amigo... se tiver algum!". Churchill, em resposta, manda dizer que não pode estar presente, mas pergunta se podia ter bilhetes para o dia seguinte, "no caso de haver segunda representação!".
Como se vê, não podiam ter sido mais ambíguos. E não obstante, foi graças a essa ambiguidade que cada um entendeu muito claramente o que o outro, de facto, lhe queria comunicar. Não se pode, por isso, ignorar a dimensão intersubjectiva da linguagem e a permanente articulação entre ethos, logos e pathos em que a mesma tem lugar. Porque este é o ponto em que a questão da ambiguidade enquanto erro se resolve ou, no mínimo, se esclarece. É que, como se sabe, a linguagem - a linguagem vulgar - não é nem universal nem essencializada, antes se determina por incontornáveis relações entre os sujeitos e as coisas, entre a vida e o mundo, entre a palavra e o seu contexto. Que o mesmo é dizer: toda a linguagem se elabora num registo de possibilidade e incerteza que só concreta e circunstancialmente se decide. O recurso à ironia, como também à metáfora e até ao silêncio ou não-dito, serão então apenas diferentes formas de recorrer à ambiguidade discursiva para fazer chegar ao leitor um pensar ou sentir, não aprisionáveis pela mera literalidade.
E eis como a ambiguidade surge, não como um erro, mas como um deliberado recurso técnico para transcender as naturais limitações da linguagem vulgar. É que, como diz Innerarity, "sem insinuações ou silêncios, seria muito difícil exprimir esse mundo de enredos em que vivemos e por cuja simplificação sempre pagamos um preço demasiado elevado"*
* Innerarity, D., (1996), "A FILOSOFIA COMO UMA DAS BELAS ARTES, Lisboa: Editorial Teorema, p. 75
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Antes de mais, notemos como a pergunta já anuncia a resposta, na medida em que, ela mesma - a pergunta - mergulha numa certa ambiguidade. Ou seja: o que é a ambiguidade? o que é um erro? A pergunta não o diz. É, ela própria, ambígua. Ao nível compreensivo, oferece pouco. Mas exige ou permite muito. Precisamente porque se pretende curta e incisiva. Como convém ao diálogo, tal como já Sócrates defendia.
Claro que se poderia optar por fazer a mesma pergunta de forma mais pormenorizada inflacionando-a com longas definições e delimitações dos dois principais conceitos que a integram, para assim reduzir o mais possível a margem de incerteza interpretativa. Mas, como se sabe, não dispomos de memória e atenção ilimitadas e, por isso, ou o perguntador se apressa a concluir a pergunta ou corre o risco de já não ter ninguém a lê-lo.
O segredo (e a dificuldade) de quem pergunta, será, pois, o de saber encontrar, para cada situação, para cada tema, para cada leitor (alvo), a mais eficaz combinatória entre os princípios da compreensibilidade e da economia discursiva. Podemos pois tentar reduzir a ambiguidade quando queremos dizer apenas o que dizemos. Mas nunca, anulá-la. Deste ponto de vista, a ambiguidade não é um erro. É mesmo a principal "marca" da própria linguagem natural que, precisamente por não ser rigorosa e unívoca, se vê investida de uma riqueza e plasticidade comunicacional sem limites.
É que falamos até aqui apenas de uma ambiguidade involuntária. De uma ambiguidade que, digamos assim, fatalmente se interpõe sempre entre escritor e leitor na produção do sentido final de cada enunciado. Mas que dizer da ambiguidade voluntária? Será um erro recorrer expressamente à ambiguidade para comunicar uma ideia ou um estado de alma? É óbvio que não. Consideremos um caso de superior recurso à ambiguidade: a ironia.
Recordemos, por exemplo, a famosa "picardia" entre Bernard Shaw e Wiston Churchill, quando o primeiro, prestes a estrear uma das suas peças, envia dois bilhetes-convite a Churchill com a seguinte indicação: "Um para V. Ex.ª e outro para um amigo... se tiver algum!". Churchill, em resposta, manda dizer que não pode estar presente, mas pergunta se podia ter bilhetes para o dia seguinte, "no caso de haver segunda representação!".
Como se vê, não podiam ter sido mais ambíguos. E não obstante, foi graças a essa ambiguidade que cada um entendeu muito claramente o que o outro, de facto, lhe queria comunicar. Não se pode, por isso, ignorar a dimensão intersubjectiva da linguagem e a permanente articulação entre ethos, logos e pathos em que a mesma tem lugar. Porque este é o ponto em que a questão da ambiguidade enquanto erro se resolve ou, no mínimo, se esclarece. É que, como se sabe, a linguagem - a linguagem vulgar - não é nem universal nem essencializada, antes se determina por incontornáveis relações entre os sujeitos e as coisas, entre a vida e o mundo, entre a palavra e o seu contexto. Que o mesmo é dizer: toda a linguagem se elabora num registo de possibilidade e incerteza que só concreta e circunstancialmente se decide. O recurso à ironia, como também à metáfora e até ao silêncio ou não-dito, serão então apenas diferentes formas de recorrer à ambiguidade discursiva para fazer chegar ao leitor um pensar ou sentir, não aprisionáveis pela mera literalidade.
E eis como a ambiguidade surge, não como um erro, mas como um deliberado recurso técnico para transcender as naturais limitações da linguagem vulgar. É que, como diz Innerarity, "sem insinuações ou silêncios, seria muito difícil exprimir esse mundo de enredos em que vivemos e por cuja simplificação sempre pagamos um preço demasiado elevado"*
* Innerarity, D., (1996), "A FILOSOFIA COMO UMA DAS BELAS ARTES, Lisboa: Editorial Teorema, p. 75
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