03 setembro 2003

A ironia das ambiguidades

Os pertinentes comentários que a Carla fez à minha apreciação sobre as ambiguidades discursivas encorajam-me a esclarecer hoje um pouco mais a minha opinião sobre o assunto. Para ser mais directo, passarei por cima de todos os pontos em que estou inteiramente de acordo e concentrar-me-ei apenas nas duas ideias que não posso deixar de refutar e que são, por um lado, a de que a ambiguidade é um erro porque é algo indeterminado e vago e por outro, a de que a ironia não é uma forma de ambiguidade:


* Sobre a ideia de que “a ambiguidade é um erro porque é algo indeterminado e vago”

Agora já não há alternativa: é preciso ver de que ambiguidades falamos. Podemos distinguir entre, pelo menos, quatro tipos de ambiguidades:

1) As que se inscrevem nas limitações da própria linguagem
2) As que são fruto de incompetência linguístico-argumentativa
3) As que servem para exprimir um sentido que não caberia na pura literalidade
4) As que são deliberadamente utilizadas para dificultar a compreensão

Na minha resposta à Carla considerei apenas os tipos de ambiguidades 1) e 3), ou seja, as que derivam da própria linguagem e as que se oferecem como recurso técnico para produzir um sentido que não seria revelável pela mera literalidade. Se não me referi às ambiguidades assinaladas em 2) e 4) foi tão somente porque não as considerei (nem considero) suficientemente problemáticas. E porquê? Porque é perfeitamente consensual que uma e outra são indesejáveis. No caso da última, aliás, é mesmo altamente condenável, por traduzir uma manifesta má fé comunicacional. Aqui, estaremos de acordo: a ambiguidade é um erro. Mas dizer que a “ambiguidade é um erro porque é algo indeterminado e vago” não será argumento. A ambiguidade é um erro em certas situações, claro. Mas não por ser “algo indeterminado e vago” pois essa é precisamente a sua própria razão de ser. E creio que já explicitei suficientemente as razões porque considero que a ambiguidade pode ser um erro em certos casos, mas não noutros.


* Sobre a ideia de que a ironia não é uma forma de ambiguidade


Voltemos ao exemplo dado:

O facto de tanto Shaw como Churchill partilharem um código que lhes permite "perceber perfeitamente o que querem dizer” não retira a ambiguidade aos respectivos enunciados. O que está aqui em causa é a ambiguidade da expressão literal e não a maior ou menor dificuldade da interpretação. É a ambiguidade da linguagem utilizada e não o grau de incerteza da sua descodificação. Porque posso ser totalmente compreendido mesmo se a minha mensagem era ambígua. Trata-se porém de uma probabilidade, de uma expectativa mais ou menos fundada e não de uma garantia. O ponto, portanto, será: há ou não há ambiguidade sempre que uma dada expressão linguística é portadora de duplo sentido? Ora é isso que a ironia “faz”: lançando a suspeita sobre o significado aparente, procede à negação ou desidentificação do que é literalmente afirmado. Mas é justamente por ser figurada e não literal que a ironia se constitui sempre como desvio, como aposta ou risco de má interpretação e ambiguidade. E é também nestes termos que se pode afirmar que Shaw e Churchill recorreram a uma linguagem ambígua. Porque o sentido final que ambos lhe terão atribuído não se encontra em nenhuma das frases que trocaram entre si. Para comunicarem com sucesso, precisaram por isso de atender mais às circunstâncias da enunciação (ao conhecimento mútuo, ao temperamento pessoal, ao tipo de relacionamento, à situação concreta, à oportunidade, etc.) do que aos próprios enunciados. Mas se alguma dúvida subsistisse quanto à ambiguidade retratada nesse exemplo, bastaria chamar a atenção para o facto de que a frase de Shaw "Um para V. Ex.ª e outro para um amigo... se tiver algum!" , embora não augure nada de muito lisongeiro para Churchill, não é, de maneira alguma, unívoca. Porque se o fosse, Churchill teria tido legitimidade para reagir, sem quaisquer rodeios, da presumível censura ou acusação (de não ter amigos). Mantendo-se essa ambiguidade, porém, a Churchill não restava outra hipótese que não fosse a de se defender, como fez, com uma outra ironia. E isso, porque, como se sabe, "amor" com "amor" se paga.