05 setembro 2003

O discurso das ambiguidades

Saúdo a entrada do Extravaganza no debate sobre as ambiguidades discursivas, bem como o grau de exigência teórica que soube conferir à sua intervenção. O facto de não concordar com a maior parte do que o HMBF defende neste seu post, é um mero pormenor. As nossas opiniões valem o que valem e, por vezes, têm muito menos importância do que aquela que lhes atribuímos. É por isso que todo o debate é bem-vindo. Seguirei o estilo assertivo que o HMBF escolheu, embora, no meu caso, mas segundo penso, também no dele, isso não signifique o menor desprezo pela prudencial interrogatividade que se há-de reconhecer a toda a argumentação. Vamos lá.


* Quanto à questão central, o HMBF desenvolve o seu raciocínio por etapas:

Primeiro, afirma que a ambiguidade é um erro: a questão é mais do foro da comunicação, a saber se um enunciado que se presta a várias interpretações é ou não um erro. Julgamos que sim, pelos simples facto de que prestando-se a diversas interpretações não cumpre o seu papel: fazer chegar uma mensagem. Faz chegar apenas aquilo a que eu chamaria uma pseudo-mensagem ou insinuação.

Depois, já admite que não o seja: A não ser que a motivação inicial do emissor seja essa, a de deixar a mensagem em aberto, possibilitando, dessa forma, múltiplas interpretações. Tal como acontece no discurso metafórico.

De passagem, recorre a Paul Foulquié para justificar a própria contradição: Porém, como afirma Paul Foulquié, não devemos julgar-nos em erro sempre que se é levado a formular proposições contraditórias.

Finalmente volta atrás para declarar que a ambiguidade, exceptuando motivações estéticas, é SEMPRE um erro: É certo que R&P veio a aceitar que a ambiguidade é um erro em certas situações. Vamos mais longe: exceptuando motivações estéticas, a ambiguidade é sempre um erro.

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Meu caro HMBF, invejo-lhe essa sua certeza!

(Estou a usar a ironia. Do meu ponto de vista não precisaria de o mencionar. Mas como o HMBF considera que a ambiguidade é sempre um erro, para o caso de não ter percebido, saiba que acabei de ironizar...).

Quanto à ambiguidade propriamente dita, é a altura de chamar a atenção para um ponto fundamental: não a defendo, justifico-a. Achei que tinha sido suficientemente claro: não concebo a ambiguidade como um ideal ou uma regra geral da comunicação, mas sim como um recurso técnico que, em certos casos, não só é perfeitamente tolerável, como se mostra o mais adequado.

E o que se diz da ironia serve para outros usos figurados, para as máximas ou provérbios, por exemplo. Há situações discursivas em que, mesmo do ponto de vista compreensivo, não há melhor opção do que recorrer a uma frase tão ambígua como esta: para bom entendedor meia palavra basta. Ora, do ponto de vista estritamente lógico (para onde me pareceu que o HMBF quis deslocar a questão), dizer só meia palavra raramente seria suficente, mesmo para o melhor dos entendedores.

Logo, é igualmente certo que com tal frase não se pretende dizer o que literalmente se diz. O que se pretende dizer então? Depende do contexto concreto em que for proferida, contexto esse que, na linha de Herman Parret (1), abrange, ao menos, as seguintes dimensões: co-textual, existencial, situacional, accional ou psicológico. Em qualquer dos casos com essa máxima pode-se querer significar diferentes coisas. E nisso consiste a sua manifesta ambiguidade.

Como alguém muito acertadamente me referiu esta semana, em correio privado, a ambiguidade está lá dentro da linguagem. Faz parte desta. Sem ambiguidade não haveria linguagem natural. Há palavras que significam várias coisas. Há coisas que são designadas pela mesma palavra. Que só uma linguagem artificial elimina a ambiguidade, é hoje mais do que adquirido. Já falei da aposta, do risco de má interpretação, no caso do recurso à ironia. Mas a verdade é que esse maior ou menor risco está sempre presente na própria linguagem (natural). Não se pode confundir a comunicação com informação. Comunicar pressupõe interacção e uma sucessão de escolhas entre vários enunciados possíveis. Comunicar não é uma pura transmissão de dados e/ou mensagens unívocas. Enfrentemos, pois, a realidade, sem horror ao fracasso. Porque como afirmam Sperber e Wilson “o facto de que a comunicação conheça fracassos é normal; aquilo que é misterioso, o que precisa ser explicado, não são os fracassos da comunicação, mas os seus sucessos” (2).


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* Sobre alguns pontos mais laterais à controvérsia:


- Quando refere as possíveis consquências danosas da ironia de Churchill:

No caso de Shaw, perante a leitura do bilhete de Churchill, poder pensar que a saída de cena da sua peça teria ficado a dever-se a influências de Churchill, quem lhe garante que não era isso mesmo que Churchill queria que Shaw pensasse?

- Quando invoca a lógica:

Tem razão Robert Blanché quando afirma, na sua História da Lógica, que os homens violam constantemente as leis que regulam o curso dos raciocínios e, por isso, frequentemente caem no erro.

No plano em que vimos debatendo a ambiguidade discursiva pareceu-me despropositada esta invocação da lógica. Primeiro, porque, como sabe, nem a lógica nem a argumentação esgotam a pluridimensionalidade do dizer que vai muito para além do nível proposional. Segundo, porque nem a ambiguidade nem a verdade têm directamente algo a ver com as “leis que regulam o curso dos raciocínios”. Como sustenta Susan Haack, “a validade de um argumento depende da sua forma” (3). E isso, independentemente das premissas serem falsas ou verdadeiras, ambíguas ou não. O que é a lógica, afinal? Desidério Murcho, no seu recente livro “O lugar da lógica”, responde claramente: “a lógica é o estudo de alguns aspectos importantes da argumentação, que nos permite distinguir os argumentos válidos dos inválidos (...). A lógica estuda a validade e não a coerência da argumentação” (4). Deixemos portanto o que “diz” a lógica para quando realmente tivermos uma questão lógica pela frente. O que não é o caso. Mas já agora, defender que a ambiguidade é sempre um erro é o equivalente a dizer que o argumento da autoridade é sempre condenável. Uma falácia, portanto.


- Quando cita Witgenstein:

A questão essencial é colocada pelo segundo Wittgenstein nas Investigações Filosóficas: “Como é que encontro a palavra «correcta»?”

Se com esta citação pretendia sugerir que a cada palavra corresponde um significado unívoco, pena foi que não tivesse continuado até à página seguinte da mesma obra de Wittgenstein, onde, para acabar com toda a dúvida, poderia ler: “Mas agora podem discutir-se todas as conexões ramificadas que cada palavra traz consigo. Não termina acom aquele primeiro juízo, porque o que decide é o campo de uma palavra” (5). Isso mesmo: o que decide é o campo de uma palavra. E não ela mesma, a supostamente correcta. Sucede ainda, que ambiguidade de que vimos falando não se restringe à palavra.


- Quando afirma que a ironia sem ambiguidade é a marca mor da filosofia socrática:

Aqui vou opor apenas um dos muitos contra-exemplos possíveis. Repare nesta passagem muito breve do “Fedro”:

FEDRO:
-Que achas deste discurso, Sócrates? Não é ele belíssimo, tanto no conteúdo como na expressão?

SOCRATES:
Caro amigo, o discurso me pareceu excelente, e deixou-me entusiasmado.

(quando, como se sabe, Sócrates não gostou nada do discurso de Lísias, tendo mesmo achado este último repetitivo e pedante, como alías, logo a seguir confessa) (6)

Como é então possível defender que Sócrates não era ambíguo na sua ironia?


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E, pela minha parte, sobre ambiguidades, é tudo. Saber quando se deve parar a argumentação sobre um dado tema é bem mais difícil do que começá-la. Mas, na dúvida, é bom ter uma regra auxiliar. A minha é a de que devemos parar quando percebemos que nos começamos a repetir. Parece inoponível.



(1) Cit. in Rodrigues, A. (1996), Dimensões Pragmáticas do Sentido, Lisboa: Edições Cosmos, 127
(2) Rodrigues, A. (1996), Dimensões Pragmáticas do Sentido, Lisboa: Edições Cosmos, 105
(3) Haack, S. (1998) Filosofia das lógicas, S. Paulo: Editora UNESP, p. 31
(4) Murcho, D., (2003) O Lugar da Lógina na Filosofia, Lisboa: Plátano Edições Técnicas, p. 12
(5) Wittgenstein, L., (1995), Tratado Lógico Filosófico – Investigações Filosóficas (2ª. ed.), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 587
(6) Platão, (2003), Fedro, São Paulo: Editora Martin Claret, p. 65