08 setembro 2003

Persuasão sem garantia

Interpela-me a Charlotte:

"E a segunda pergunta? A das garantias (muito gosto eu desta palavra). Passamos to the next level ou fazemos um intervalucho para comer um gelado?"

Sendo que a segunda pergunta era:

"Se seguirmos todos os passos na escrita, por exemplo, de um encómio, podemos ter uma garantia de que os nossos leitores serão convencidos?"


Cara Charlotte,

Honram-me as suas perguntas. É, porém, honra demais para saber de menos. Logo, imerecida. Se para alguma ilusão (ia a escrever ambiguidade...) involuntariamente concorro, neste domínio, ela inscreve-se, por certo, ao nível do próprio dizer pois, como diz Michel Meyer, “censurar o discurso por ser manipulador reduz-se na realidade a censurar o discurso por ser. Porque está na natureza da discursividade apresentar-se desde logo como um responder, como resposta, tal como está nas mãos dos homens decidir encarar ou não esse facto, aceitá-lo ou não" *. É natural, portanto, que, no ímpeto de lhe (cor)responder acabe por dar mais visibilidade a umas poucas certezas do que às minhas inúmeras dúvidas.

Mas não há tempo a perder: nem para um "intervalucho", nem para "comer um gelado". Vamos ao que interessa. Do ponto de vista retórico, não há nunca "uma garantia de que os nossos leitores serão convencidos". E isto por três grandes razões:

Primeira,
porque o escritor ou o orador, têm não só que saber muito bem do que escrevem ou falam, mas também conhecer o melhor possível a pessoa ou o público a quem se dirigem.

Segunda,
porque a tarefa de persuadir e/ou convencer não pode dissociar-se da maior ou menor habilidade para antever a reacção do outro (presente ou ausente), nem da perspicácia com que se avalia o efeito produzido.

Terceira,
porque persuade ou convence, quem argumenta. E o processo argumentativo, como lembra Rui Grácio, "é sempre realizado no concreto, nesta ou naquela situação, perante este ou aquele auditório, sendo impossível, a priori, definir as estratégias que vão ser efectivamente eficazes, ou saber antecipadamente que argumentos usar, como utilizá-los, como dispô-los, qual o momento certo para o fazer e que resultados se irão obter. A argumentação remete para o contexto e só este pode fornecer, caso a caso, as pistas que guiarão no desenrolar do processo argumentativo” **.

Ou seja: nenhuma estratégia de persuasão pode escapar a uma certa margem de imprevisibilidade e de risco. Aliás, se houvesse uma garantia de sucesso ou um método discursivo infalível para convencer alguém onde ficaria o respeito pelo outro? Já se pensou no campo que assim se abriria à tão propalada manipulação pela palavra?


A terminar, deixarei apenas dois pontos para reflexão:

1) A retórica é, muitas vezes, injustamente confundida com o "paleio do vendedor" ou com a conversa da "banha-da-cobra". Mas o que se passa é que quem é capaz de enganar pela palavra é porque já seria capaz de enganar antes, por qualquer outro meio. Logo, sempre enganaria: com ou sem retórica. A retórica (e o discurso em geral) é como um objecto cortante. A faca de cozinha, por exemplo: bem usada é de enorme utilidade, mas mal usada pode ferir, tornar-se perigosa.

2) A retórica só é eticamente defensável quando obedeça ao primado da simetria entre as partes. Retóricos deverão ser por isso todos os interlocutores e não apenas o orador oficial, por exemplo. A retórica não é o domínio das técnicas de convencer, por um lado, e a ignorância total sobre as mesmas ou a mais completa passividade, pelo outro. Nenhuma palestra ou debate se qualifica perante um auditório impreparado. Nenhum livro se cumpre sem um leitor culturalmente exigente. Como salienta Perelman, o que certifica a qualidade de um acto retórico é a qualidade do respectivo auditório (e não a do orador).

E agora sim, vou fazer o "intervalucho"... e "comer o gelado".


* Meyer, M., (1994), As bases da retórica, in Carrilho, M. (org.), Retórica e Comunicação, Porto: Edições ASA, p. 70
**Grácio, R., (1998), Consequências da retórica, Coimbra: Pé de Página Editores, p. 78