15 novembro 2003

Factos & Jornalismo

Publicou o Abrupto, na sua edição de 12.11.2003 a carta de um leitor que é, por sinal, jornalista, onde este, a certa altura, diz:

Quando sou destacado para acompanhar um qualquer evento, quando escrevo sobre uma reunião da Assembleia Municipal, os meus leitores não querem saber o que penso sobre os assuntos; querem saber o que se passou, quem disse o quê, porquê e para quê.

Eu, jornalista, sou um cidadão igual aos outros: a minha opinião é importante para mim e para os meus familiares e amigos. Não o é para a generalidade dos meus concidadãos. Para estes, o importante é disporem dos factos para formar a própria opinião.


É caso para perguntar:

- Se a função do jornalista se limita a "transmitir" os factos aos seus leitores para que estes formem a sua própria opinião, não será melhor acabar com os jornalistas e recorrer a câmeras de filmar? Quer-se mais "objectividade" que isso?


De facto, não concordo com este leitor (jornalista) do Abrupto e vou dizer porquê.

O que se espera de um jornalista não é uma mera reprodução escrita, fotográfica ou fílmica dos factos. O que se espera de um jornalista é que comunique aquilo de que "tomou conhecimento" e não que relate acontecimentos ou factos avulsos, caóticos. Que nos traga ao espírito uma realidade com sentido, ainda que dele venhamos a discordar. Que se preocupe com sua opinião e não com a nossa. Que nos "apresente" as notícias, ou seja, que não fuja da opinião como quem foge da própria sombra.

O jornalismo não pode ser, nem é, mero espelho da realidade. E, ultrapassada essa falsa ideia de acesso à pura factualidade, há-de centrar-se cada vez mais nas tarefas de recepção, interpretação, avaliação e debate, que o fazem retornar ao “(...) mundo da opinião, da intersubjectividade, do confronto e livre discussão das ideias, um mundo, afinal, onde não é possível traçar, milimetricamente ou a esquadro, qualquer fronteira entre o bem e o mal, entre o belo e o feio, entre o justo e o injusto” *.

Poder-se-á então falar do jornalismo também como uma forma de conhecimento. De um conhecimento retórico, assinale-se, pois se o que o jornalista comunica é sempre a sua avaliação da realidade e nunca o facto em si mesmo, então há necessidade de convocar uma argumentatividade que justifique e prove o acerto ou a preferência dessa sua interpretação sobre outras interpretações igualmente possíveis.

Dir-se-á que isto nos remete para uma concepção subjectivista de jornalismo no sentido mais relativista do termo, que o mesmo é dizer, onde cada opinião vale o que vale, sem qualquer compromisso com a verdade. Nada de mais enganoso, porém, já que é justamente pelo facto do jornalista se bater pela objectividade e pela verdade que tem necessidade de argumentar em favor dos seus critérios de selecção dos factos, do enquandramento e do significado que lhes concede ou atribui. Numa palavra, tem que mostrar aquilo que o próprio facto (isolado) nunca deixaria ver.


* Sousa, A., (2001), “Retórica e discussão política”. Comunicação apresentada no II Congresso da SOPCOM, em Outubro de 2001, na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa