29 novembro 2003

Vem aí o homem sem rosto?

Será tão aterradora como parece a anunciada hipótese dos médicos passarem em breve a transplantar também rostos de cadáveres para seres vivos?

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Eduardo Prado Coelho, que dedicou a sua excelente crónica de ontem, no Público, precisamente a este assunto, mostra-se muito preocupado com as (dramáticas) situações a que o transplante facial nos irá conduzir. A perspectiva de "nos olharmos ao espelho e vermos um outro no nosso lugar" será, segundo ele, apenas uma das múltiplas situações embaraçosas que nos esperam. E o problema agrava-se se pensarmos que, embora tais transplantações estejam inicialmente destinadas àqueles que, por queimadura ou acidente, tenham ficado com os rostos desfigurados, rapidamente se virão a generalizar a quem, por mero capricho ou preferência pessoal, queira mudar de face. O que significa que a polémica está, por certo, a caminho.

Uma ideia que parece ficar, também, fortemente ameaçada, é a de que “nesta vida só devemos ter uma cara”. Porque dependendo do número de transplantes a que se sujeite, qualquer um pode vir a ter mais do que uma. E tudo leva a crer que a questão não se fique pela mudança de face. A curto prazo, será igualmente possível escolher a “cara que mais lhe convém” ou que sempre sonhou ter. Decididamente, o mundo não será mais o que era. E nem precisamos de dar muitas voltas à imaginação para descobrir algumas situações verdadeiramente caricatas num futuro assim desenhado. Por exemplo, que sensação experimentaremos se um dia nos viermos a cruzar na rua com alguém que leva a cara de um nosso familiar ou amigo já falecido? Como iremos reagir se quando batermos à porta do António este nos vier atender com a cara que era do Joaquim? E se a cara transplantada for a de uma famosa figura do cinema ou da tv? De que modo isso irá afectar a vida do seu novo detentor? Talvez seja melhor parar por aqui. Porque, como diria Daniel Dennett, a ideia de que a realidade ameaça destruir, num ápice, milénios da melhor ficção é “uma ideia perigosa”. Perigosa, mas... incontornável.

Não admira, por isso, que Eduardo Prado Coelho termine a sua crónica num ambiente de descrença, pessimismo e até de horror:

"A partir daqui, se alguma vez lá chegarmos, haverá corpos, rostos, mãos, óculos, bengalas, corações artificiais, máquinas estranhas incorporadas, novas formas de pele, maneiras de ser e de viver que irão circulando - e no meio de tudo isto, como náufragos, rostos, nomes próprios, assinaturas, corpos, palavras que ainda dizem "eu" sem saber o que dizem. "

Estas são, inegavelmente, palavras de severo desencanto, que traduzem, por assim dizer, a “saudade antecipada” de um rosto tido desde sempre como o principal traço identitário e, ao mesmo tempo, o fiador do próprio relacionamento interpessoal. São palavras que, sem dúvida, nos alertam para os perigos da tecnociência se os seus desmesurados poderes não forem política, social e eticamente escrutinados *. Manda a verdade dizer, porém, que não comungo de tanto pessimismo. Principalmente se o tema vier a receber (como espero) cada vez maior destaque na esfera do debate público e se a desejada posição consensual for precedida de crítico aprofundamento. Estou plenamente convencido de que pior ainda do que ignorar o problema, seria encará-lo como uma fatalidade.


* Tema do m/próximo livro “O HOMEM COM MEDO DE SI PRÓPRIO” a sair em Janeiro 2004 (Editora Jardim do Tabaco).