12 setembro 2004

Horror mediático

Há uma semana atrás o músico e compositor António Pinho Vargas trouxe à sua crónica do Público um facto televisivo que, não sendo novo, foi a primeira vez que vi ser abordado à luz de uma certa estética mediática. Sintetizando:

O facto:

Anteontem [dia 3 de Setembro] fiz um esforço para chegar a casa a tempo de ver as noticias às 8 horas sobre o desenlace do assalto terrorista na Russia. (...) Vi as notícias, as imagens de terror, tirei as conclusões que pude mas no final vi outro objecto digno de análise. Antes de avançarem para outros assuntos do dia, a SIC e a TVI - nao vi na RTP - passaram resumos de 30 ou 45 segundos do já mostrado. Sem palavras e com musica.

O comentário:

Este momento realiza a passagem para a estetização do horror. Não acrescenta nada às notícias, mas configura urn formato determinado dos 'media'. Num caso com música lugubre, próxima das atmosferas mais sinistras de Bruckner, com incidência no plano da menina loira dentro de um carro, no outro, com música mais dissonante e rítmica, no estilo dos herdeiros modernos de Stravinsky dos filmes de acção de Hollywood: planos de automóveis e ambulâncias a grande velocidade, soldados ou pais a correr com crianças mortas ao colo. Escrevo e é-me insuportável o que escrevo. Tento descrever o que vi e ouvi mas a minha descrição ofende-me. O resumo que estetiza o horror desloca-se do simples registo noticioso para o do 'videoclip' da catástrofe. (...) Que áudio-mundo é este que estamos a fazer?

Curiosamente, João Mário Grilo traz o mesmo assunto à sua crónica na Visão desta semana, onde, não só se solidariza com a interpretação crítica de Pinho Vargas, como vai mais longe, e a meu ver, com o devido respeito, longe de mais:

(...) também eu escrevo, sendo-me insuportável o que escrevo. Também ouvi a música, também vi esse ensaio de «cineminha» desprezível, também assisti a utilização das fotografias para «sentir o drama», momentaneamente traído pela «informação» e pelo movimento. Nas palavras de Antonio Pinho Vargas reconheço, então, o mesmo caminho que agora percorro e em que a minha consciência se debateu durante uma semana. Daí a hesitação inicial. Mas também eu sei o quanto é preciso dizer (gritar) em que coisa nojenta se converteu - conscientemente - a televisão, e que é, à sua maneira, uma espécie de terrorismo de massas e planetária. O nojo é, porém, urn sentimento complexo. E uma forma de recusa, de repugnância, mas também uma forma especial de cólera.

Sucede que também vi as mesmas imagens. Também escutei a mesma música. E concordo, claro, que esta última conferiu às imagens uma outra força evocadora, uma maior intensidade dramática. Mas Pinho Vargas vem dizer que passar essas imagens “sem palavras e com música” leva à “estetização do horror” e “não acrescenta nada às notícias”. Conceda-se no que respeita à “estetização do horror”, apesar da reconhecida polissemia dessa expressão. Lembremos porém que a estética não se limita ao domínio do maravilhoso nem desaparece com a própria morte. Podemos, por isso, discordar de certa linha estética sem pôr em causa a estetização propriamente dita, que, queiramos ou não, tem as suas raízes mais profundas, na nossa cultura perceptiva. Outra coisa, no entanto, é afirmar que a passagem dessas imagens com música “não acrescenta nada às notícias”. Porque é evidente que se nada acrescentasse às notícias, também nada haveria para criticar. Acrescenta e, tanto acrescenta, que suscitou a reacção de Vargas, Grilo e certamente outros mais. Dir-se-á que acrescentou algo mas que o que acrescentou, em nada contribuiu para a transmissão da notícia, isto é, não aumentou o seu “quantum” informativo. Só que em matéria noticiosa, privilegiar o elemento quantitativo é, como se sabe, não apenas limitador como ofensivo do próprio critério jornalístico. Além disso, nenhum meio de informação, nenhum “media”, pode ignorar as condições de recepção das suas notícias, pois sem audiência não há qualidade de informação que lhe permita sobreviver. Não pode por isso surpreender que também ao nível do pathos, onde se jogam, afinal, a emoção e o agrado, cada “media” procure criar as melhores condições de recepção aos seus leitores, ouvintes ou tele-espectadores.

É certo que já não tenho bem presentes na minha memória as imagens e as precisas características da música que induziram a reparos tão veementes. Mas sei que vi e ouvi, sem outro constrangimento que não fosse o da crueza da realidade que ia sendo mostrada. Diversamente de Vargas e de Grilo, vi nesses 30 a 45 segundos de repetição das principais imagens da reportagem, não a exploração gratuita da sensibilidade do telespectador mas, mais exactamente, um tempo adicional de sintonia com o drama, uma forma de o recapitular, agora já num contexto de maior serenidade, passado que fora o tremendo impacto da notícia. Terão sido, para muitos, os primeiros momentos de reflexão sobre tão trágico acontecimento. Para outros, pelos vistos, só suscitaram nojo, repugnância. É natural, principalmente quando domine o gosto e o temperamento. Natural e humano. O que já não parece natural nem recomendável é que se caia na radical generalização de considerar que a televisão é “cega na sua paranóia (ridiculamente cinematografica, «a americana»)” e “à sua maneira, uma espécie de terrorismo de massas e planetária”. Principalmente quando se apontam os erros sem indicar as soluções.



Nota:

Pela minha parte devo dizer que foi o horror da própria realidade que profundamente me chocou e não o maior ou menor desacerto deste ou daquele procedimento técnico ligado à respectiva transmissão televisiva.