12 agosto 2004

A retórica da clonagem

Como está a ser noticiado pela generalidade dos órgãos de informação, foi ontem autorizada em Inglaterra, pela primeira vez, a clonagem de embriões humanos para fins terapêuticos. O que penso sobre esta grande questão do nosso tempo, já o disse no meu livro "O Homem com medo de si próprio", que acaba de ser publicado, e do qual deixo aqui este excerto:


A clonagem é boa, proclamam uns; a clonagem é má, avisam outros. E vem a réplica: a clonagem é boa quando limitada à clonagem terapêutica; a clonagem má, é a reprodutiva. A clonagem terapêutica, diz-se, é benéfica porque pode ser muito útil no estudo e tratamento de doenças genéticas graves, como no caso das doenças de Parkinson ou Alzheimer. Mas logo alguém rebate afirmando que a clonagem terapêutica abre caminho à clonagem reprodutiva, logo, também é má. E, de facto, se um homem é estéril e usa a clonagem reprodutiva para ter um filho pode-se defender que esse uso foi um uso terapêutico. Clonagem reprodutiva? Não. “Isso é criminalmente irresponsável. Haveria muitos defeitos, muitas anormalidades, muitas crianças mortas. Para mim está fora de cogitação” (180) - afirma a genetista Anne McLaren, pioneira da biologia reprodutiva e membro do Human Fertilisation Embryology Authority, organismo que regula as pesquisas com embriões, em Inglaterra. Enquanto isso, os raelianos da Clonaid e o médico italiano Severino Antinori continuam a anunciar ao mundo uma série de clones humanos, cujo nascimento está para breve ou já deveriam mesmo ter nascido, mas aos quais ninguem conseguiu ainda pôr a vista em cima. E assim continuamos divididos entre o sonho de criar um novo homem e o receio de vir a gerar apenas um monstro.

Essas são divergências centradas no ainda insuficiente estádio do conhecimento científico sobre a clonagem. Assim, o método não é suficientemente seguro e eficiente? Então, pelo menos, por agora, proíba-se a clonagem. Mas... e depois? Devemos aguardar que a ciência seja capaz de assegurar à clonagem uma taxa de cem por cento de sucesso ou muito próximo dessa percentagem? Que não, gritarão aqueles que consideram que a clonagem é, além do mais, eticamente condenável. Aqui, mudam os argumentos: porque vai afectar as relações de parentesco e isso destruirá o ideal de família, porque trará problemas com a identidade do indivíduo clonado e além disso, porque passaria a ser uma arma ao dispor de qualquer controlo genético. A pretensão do homem se comparar a Deus e querer assim substituí-lo na ordem da criação, é um argumento de índole religiosa que pode também, a todo o momento, ser atirado para cima da mesa. Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia na Universidade de S. Paulo, analisa estas dificuldades éticas suscitadas pela clonagem com base numa certa rigidez ou imutabilidade da nossa própria ideia de ética. Segundo ele, “Cremos no progresso da ciência, mas na permanência da ética. Ora, nada justifica que a ética não mude. Se não ousamos dizer que a ciência chegou a seu estágio final, não devemos dizer isso da ética (...)” (181).

E isto, porque, embora directamente a ética e a ciência não tenham a ver uma com a outra (a ciência diria o que é, e a ética, o que se deve fazer), o que se passa, de facto, é que as duas se influenciam e ajustam mutuamente (182). E a história é a melhor testemunha: “Poucos, hoje, condenam a anatomia. Sabemos que o conhecimento gerado por ela salvou milhões de vidas. Somos mais tolerantes com a sexualidade alheia. A expressão efusiva de sentimentos em público, mesmo de teor sexual, incomoda cada vez menos gente. E isso nos ajudou a ter uma ética que lida menos com a superfície e mais com o fundo das coisas. Saímos do conjunto de regras prontas e passamos a questionar o seu sentido. Tal mudança deve muito à ciência” (183).

Ora bem se vê que, se muda a natureza do saber que nos permitiu estruturar uma crença ética, esta não poderá permanecer indiferente a tal alteração. Ou se suspende ou, no mínimo, terá de se adaptar aos novos conhecimentos, de ser reavaliada. Talvez então que a dificuldade de gerar consenso na clonagem possa, em grande parte, ser explicada pelo facto do reajustamento ter que se aplicar quer sobre o rumo (da ciência) quer sobre o próprio instrumento do reajuste (ética). Em qualquer dos casos não basta debater ou argumentar na base de uma epidérmica sensibilidade à questão. É preciso recolher a máxima informação possível, reflectir e ponderar sobre os principais valores e direitos em causa, alguns deles, como se sabe, conflituando entre si. Será que o físico Richard G. Seed, também ligado à embriologia, avançou com as melhores razões em favor da clonagem, quando declarou à revista Scientific American (Nov/2001) que ela poderá eventualmente ser um último recurso para tratar casos graves de infertilidade ou para "substituir um ente amado, já falecido, por um gémeo"? (184) Mas este é ainda o nosso mundo, o mundo humano. E, como vimos, já outros mundos nos espreitam. Novos mundos, novas perplexidades. Tamanho é o salto mental que exigem de nós.


in Sousa, Américo (2004), O HOMEM COM MEDO DE SI PRÓPRIO, Porto: Estratégias Criativas, pp. 100-101



(180) Entrevista à “Revista Pesquisa”, disponível no “site” brasileiro do Ministério da Ciência e Tecnologia: http://www.mct.gov.br/especial/clone04.htm
(181) Ribeiro, Renato Janine, “Prometeu versus Narciso: a ética e a clonagem” in “Revista Pesquisa”, disponível no site brasileiro do Ministério da Ciência e Tecnologia: http://www.mct.gov.br/especial/clone05.htm
(182) No mesmo sentido de mudança e inter-influência da ética e da ciência, diz George Steiner: “A nossa ética, os nossos hábitos de consciência fundamentais (....) estão em pela mudança (...) nós próprios nos encontramos em metamorfose. Ignorar estes fenómenos científicos e tecnológicos, desdenhar os seus efeitos sobre a nossa experiência física e mental, é abandonar o campo da razão” op. cit. p. 130
(183) Ribeiro, Renato Janine, op. cit.
(184) in ComCiência-Revista Electrónica de Jornalismo Científico:

http://www.comciencia.br/reportagens/clonagem/clone05.htm