19 junho 2005

Excertos de um livro não anunciado (240)

Ou seja, uma retórica só pode ser desacreditada por outra retórica. Talvez por isso a generalidade dos autores se venha referindo não apenas à sua face positiva, enquanto geradora de consensos que aproximam os homens e reforçam o pluralismo democrático mas também a uma importante acção negativa que se traduz na sua aptidão específica para desmontar argumentações de valor meramente aparente, duvidoso ou até propositadamente manipulado. Para Rui Grácio, por exemplo, os eventuais abusos de retórica são muito mais relativos à avaliação do humano do que à retórica, pois é justamente a competência retórico-argumentativa que deles nos pode prevenir (*). No mesmo sentido, se pronuncia Perelman quando, para sublinhar a dimensão crítica da retórica, afirma que “através do estudo dos procedimentos argumentativos, retóricos e dialécticos, é-nos possível aprender a distinguir os raciocínios aceitáveis dos raciocínios sofistas, os que procuram persuadir e convencer, dos que procuram enganar e induzir em erro” (**). Colocada assim a tónica na competência argumentativa como possibilidade de desmascarar a chamada retórica negra (sofística), impõe-se então retomar aqui a concepção interrogativa de Meyer, na medida em que, como já salientamos, ela pode proporcionar-nos um critério de distinção entre o uso e o abuso da retórica (***).

(*) Grácio, R., Introdução à tradução portuguesa, in Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 9
(**) Perelman, C., L’usage et l’abus des notions confuses, in Éthique et Droit, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1990, p. 817
(***) Equivalente à diferença entre um uso crítico e um uso manipulador.