16 abril 2007

Excerto de um livro não anunciado (372)

Mas imaginemos agora que, a certa altura, somos surpreendidos, no decurso da nossa despreocupada leitura do jornal, por uma notícia que, por este ou aquele motivo, consideramos muito preocupante, ou então, excepcionalmente favorável a um qualquer interesse que nos diz directamente respeito. A nossa curiosidade agudiza-se, a leitura pode tornar-se anormalmente apressada, mas, acima de tudo, por nada deste mundo quereremos perder o menor detalhe de uma informação tão importante. Precisamos pois de prestar a maior atenção ao que é dito na respectiva notícia. Simplesmente, como diz Damásio, “a atenção e a memória de trabalho possuem uma capacidade limitada” (*), o que faz com que esse acréscimo de atenção que passamos a colocar na leitura do jornal, tenha como consequência directa uma correspondente diminuição da atenção sobre aquela pluralidade de factos e acontecimentos sobre os quais mantínhamos até aí um apreciável controlo e vigilância. Isto, no que respeita aos estímulos que nos são exteriores. Mas, com a redução do campo de consciência, é de admitir que um processo análogo ocorra também dentro de nós, ao nível dos conteúdos mentais a que passamos a ter acesso, pois, ainda no dizer de Damásio, “as imagens que reconstituímos por evocação ocorrem lado a lado com as imagens formadas segundo a estimulação vinda do exterior” (**). E, como sustenta este mesmo autor, as imagens são provavelmente o principal conteúdo dos nossos pensamentos, independentemente da modalidade em que são geradas e de serem sobre uma coisa ou sobre um processo que envolve coisas, palavras ou outros símbolos. Logo, retomando o exemplo da notícia do jornal, o embrenharmo-nos profundamente na sua leitura dá-se à custa de uma focalização da nossa atenção sobre o respectivo texto que, embora necessária à melhor compreensão possível, pode, a partir de determinado nível de intensidade, levar-nos à perda daquelas referências concretas ou idealizadas que normalmente nos asseguram a relativização do raciocínio e da própria avaliação. Ora o esfumar dessas referências só pode levar a uma tendência para a absolutização dos nossos juízos, na medida em que, desaparecendo os padrões comparativos, o que é pensado surge-nos como valendo por si mesmo, ou seja, não é verdadeiro nem falso, não é certo ou incerto, não é preciso nem impreciso. É, simplesmente. E como tal é assumido. Nenhuma comparação, nenhuma resistência: eis o limiar da própria hipnose (***).


(*) António Damásio, (1995), O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-América, (15ª. ed.), 1995, p. 184. Note-se que Damásio define a “atenção” como capacidade de concentração num determinado conteúdo mental em detrimento de outros, e “memória de trabalho” como consistindo na capacidade de reter informação durante um período de muitos segundos e de a manipular mentalmente (p. 61, op. cit.).
(**) António Damásio, (1995), op. cit., p. 124
(***) Apesar deste exemplo se relacionar mais directamente com a chamada auto-hipnose, o processo de focalização da atenção que nele se descreve é em tudo idêntico ao da hipnose induzida por uma terceira pessoa. Acresce que, para Chertock, a auto-hipnose é, em geral, mais difícil de obter que a hetero-hipnose, para além de ser tida como incapaz de produzir um transe profundo .