Decisões reflectidas
‘todas as decisões são um salto no escuro, uma catástrofe entre pensamento e acção: a gente hesita, pensa, pesa “os prós e os contras” e, de repente, decide.’
PVG, no cristóvao de moura – post "DECISÕES TERRORISTAS", de 23.08.2003
Ainda o processo de decisão. Evidentemente que há decisões que são um salto no escuro. Se, por exemplo, me despeço da empresa onde trabalho sem ter ainda garantida uma nova colocação profissional, essa minha decisão constituiu-se como um salto no escuro. Neste caso, um salto para o desemprego. Mas não é, certamente, a este "escuro" que PVG se refere. O seu "salto no escuro" terá mais a ver, assim interpreto, com uma suposta interrupção causal entre o pensamento e a decisão de agir. Ora esta formulação de PVG surpreende, por dois motivos.
Em primeiro lugar porque universaliza e toma como imperativo o dito salto no escuro, ao referir que "todas" as decisões representariam uma catástrofe entre pensamento e acção. O que, como se sabe, não corresponde à realidade. Há e sempre houve decisões impulsivas, tomadas inopinadamente e até em direcção contrária à do pensamento que as antecedeu. Mas não se pode confundir a excepção com a regra, e muito menos, fazer da excepção lei.
Em segundo lugar porque tal salto no escuro ficar-se-ia a dever a uma descontinuidade lógica entre o raciocínio e a acção. É, pelo menos, o que se depreende da expressão "de repente", a qual implicitamente sugere que o balanço analítico de "os prós e os contras" não será tido em conta, ao menos, como factor determinante da decisão. O que (embora não afirmado) deixa em aberto que a decisão emergiria (teria de emergir) da pura irracionalidade.
Será isto sustentável? Sabe-hoje que analisar previamente todos "os prós e os contras" de uma situação ou problema, não é o único caminho de que dispomos para chegar a uma boa decisão ou à melhor decisão possível. Se só dispuséssemos dessa estratégia, diz-nos António Damásio, a racionalidade nela presente não iria funcionar. Quer porque em certos casos mais complexos a decisão levaria demasiado tempo a chegar, quer porque presos nos meandros do respectivo cálculo poderiamos até não chegar nunca a uma decisão.
Damásio é categórico: "não vai ser fácil reter na memória as muitas listas de perdas e ganhos que necessita de consultar para as suas comparações (...). A atenção e a memória de trabalho possuem uma capacidade limitada. Se a sua mente dispuser apenas do cálculo puramente racional, vai acabar por escolher mal e depois lamentar o erro, ou simplesmente desistir de escolher, em desespero de causa (...). E no entanto, apesar de todos estes problemas, os nossos cérebros são capazes de decidir bem, em segundos ou minutos, consoante a fracção de tempo considerada adequada à meta que pretendemos atingir e, se o conseguem com tanto ou tão regular êxito, terão de efectuar essa prodigiosa tarefa com mais do que a razão pura. Precisam de qualquer coisa bem diferente” *.
Ora essa coisa bem diferente, é justamente o marcador-somático que Damásio concebe como um caso especial do uso de sentimentos que foram criados a partir de emoções secundárias. À medida que estas emoções e sentimentos se manifestam, vão sendo ligados por via da aprendizagem a certos tipos de resultados futuros conexionados, por sua vez, a determinados cenários. De tal forma que, quando um marcador- somático é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona ou como uma campaínha de alarme, no caso do marcador ser negativo, ou como um incentivo, quando o marcador é positivo.
Basicamente é assim que tudo se desenrola. No momento em que nos surgem os diversos cenários, desdobrados na nossa mente, de modo demasiado rápido para que os pormenores possam ser bem definidos (e antes que tenha lugar tanto a análise lógica de custo/benefícios como o raciocínio tendente à solução), se, por exemplo, surge um mau resultado associado a uma dada opção de resposta, por mais fugaz que seja, sente-se uma sensação visceral desagradável. Daí a explicação de Damásio: “como a sensação é corporal, atribuí ao fenómeno o termo técnico de estado somático e porque o estado ‘marca’ uma imagem, chamo-lhe marcador”.
Mas que relação de semelhança se pode estabelecer entre este marcador-somático e um suposto "salto no escuro" na decisão? A meu ver, nenhuma. O salto no escuro, seja lá o que for - momentânea cegueira, ruptura do pensamento lógico, abandono total da razão - representaria a generalizada incapacidade (ou voluntária recusa) de se chegar a uma decisão racional. Já o marcador somático configura-se tão somente como filtro ou mecanismo (neurobiológico) de selecção que actua mais rápida e directamente do que o cálculo lógico de perdas e ganhos, na procura da melhor resposta para cada questão ou problema. Por isso poderemos também dizer que do lado do salto no escuro nos espera o mergulho na mais completa irracionalidade, enquanto que do lado do marcador somático encontramos uma racionalidade enriquecida pelas emoções agora entendidas, não apenas como fonte de perturbação do raciocínio mas também como condição da sua própria possibilidade.
* Damásio, A., (1995) O Erro de Descartes, Mem Martins: Public. Europa-América, (15ª. ed.)
PVG, no cristóvao de moura – post "DECISÕES TERRORISTAS", de 23.08.2003
Ainda o processo de decisão. Evidentemente que há decisões que são um salto no escuro. Se, por exemplo, me despeço da empresa onde trabalho sem ter ainda garantida uma nova colocação profissional, essa minha decisão constituiu-se como um salto no escuro. Neste caso, um salto para o desemprego. Mas não é, certamente, a este "escuro" que PVG se refere. O seu "salto no escuro" terá mais a ver, assim interpreto, com uma suposta interrupção causal entre o pensamento e a decisão de agir. Ora esta formulação de PVG surpreende, por dois motivos.
Em primeiro lugar porque universaliza e toma como imperativo o dito salto no escuro, ao referir que "todas" as decisões representariam uma catástrofe entre pensamento e acção. O que, como se sabe, não corresponde à realidade. Há e sempre houve decisões impulsivas, tomadas inopinadamente e até em direcção contrária à do pensamento que as antecedeu. Mas não se pode confundir a excepção com a regra, e muito menos, fazer da excepção lei.
Em segundo lugar porque tal salto no escuro ficar-se-ia a dever a uma descontinuidade lógica entre o raciocínio e a acção. É, pelo menos, o que se depreende da expressão "de repente", a qual implicitamente sugere que o balanço analítico de "os prós e os contras" não será tido em conta, ao menos, como factor determinante da decisão. O que (embora não afirmado) deixa em aberto que a decisão emergiria (teria de emergir) da pura irracionalidade.
Será isto sustentável? Sabe-hoje que analisar previamente todos "os prós e os contras" de uma situação ou problema, não é o único caminho de que dispomos para chegar a uma boa decisão ou à melhor decisão possível. Se só dispuséssemos dessa estratégia, diz-nos António Damásio, a racionalidade nela presente não iria funcionar. Quer porque em certos casos mais complexos a decisão levaria demasiado tempo a chegar, quer porque presos nos meandros do respectivo cálculo poderiamos até não chegar nunca a uma decisão.
Damásio é categórico: "não vai ser fácil reter na memória as muitas listas de perdas e ganhos que necessita de consultar para as suas comparações (...). A atenção e a memória de trabalho possuem uma capacidade limitada. Se a sua mente dispuser apenas do cálculo puramente racional, vai acabar por escolher mal e depois lamentar o erro, ou simplesmente desistir de escolher, em desespero de causa (...). E no entanto, apesar de todos estes problemas, os nossos cérebros são capazes de decidir bem, em segundos ou minutos, consoante a fracção de tempo considerada adequada à meta que pretendemos atingir e, se o conseguem com tanto ou tão regular êxito, terão de efectuar essa prodigiosa tarefa com mais do que a razão pura. Precisam de qualquer coisa bem diferente” *.
Ora essa coisa bem diferente, é justamente o marcador-somático que Damásio concebe como um caso especial do uso de sentimentos que foram criados a partir de emoções secundárias. À medida que estas emoções e sentimentos se manifestam, vão sendo ligados por via da aprendizagem a certos tipos de resultados futuros conexionados, por sua vez, a determinados cenários. De tal forma que, quando um marcador- somático é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona ou como uma campaínha de alarme, no caso do marcador ser negativo, ou como um incentivo, quando o marcador é positivo.
Basicamente é assim que tudo se desenrola. No momento em que nos surgem os diversos cenários, desdobrados na nossa mente, de modo demasiado rápido para que os pormenores possam ser bem definidos (e antes que tenha lugar tanto a análise lógica de custo/benefícios como o raciocínio tendente à solução), se, por exemplo, surge um mau resultado associado a uma dada opção de resposta, por mais fugaz que seja, sente-se uma sensação visceral desagradável. Daí a explicação de Damásio: “como a sensação é corporal, atribuí ao fenómeno o termo técnico de estado somático e porque o estado ‘marca’ uma imagem, chamo-lhe marcador”.
Mas que relação de semelhança se pode estabelecer entre este marcador-somático e um suposto "salto no escuro" na decisão? A meu ver, nenhuma. O salto no escuro, seja lá o que for - momentânea cegueira, ruptura do pensamento lógico, abandono total da razão - representaria a generalizada incapacidade (ou voluntária recusa) de se chegar a uma decisão racional. Já o marcador somático configura-se tão somente como filtro ou mecanismo (neurobiológico) de selecção que actua mais rápida e directamente do que o cálculo lógico de perdas e ganhos, na procura da melhor resposta para cada questão ou problema. Por isso poderemos também dizer que do lado do salto no escuro nos espera o mergulho na mais completa irracionalidade, enquanto que do lado do marcador somático encontramos uma racionalidade enriquecida pelas emoções agora entendidas, não apenas como fonte de perturbação do raciocínio mas também como condição da sua própria possibilidade.
* Damásio, A., (1995) O Erro de Descartes, Mem Martins: Public. Europa-América, (15ª. ed.)
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