24 setembro 2003

Reflexos de retórica (3)

A RAIZ DEMOCRÁTICA DA RETÓRICA

“A prova (uma das provas) de que para haver diálogo autêntico é necessário já desfrutar da liberdade está no facto da retórica, como se sabe, ter nascido em berço democrático e ainda hoje só nesse contexto político encontrar o seu espaço de afirmação.” – afirmei no meu post “Três pontos...” do passado dia 15.

Procuro hoje justificar porque fiz (e faço) essa ligação entre a liberdade e a raiz democrática da retórica. Em primeiro lugar, trata-se de uma ideia consensual entre os autores de retórica, os quais descrevem a realidade sócio-política em que a retórica emergiu como extremamente favorável ao seu desenvolvimento. Recordemos que nessa altura, de facto, Atenas não poderia ser mais democrática. As decisões políticas eram tomadas pela Assembleia composta na totalidade por cidadãos livres. Qualquer um poderia intervir para fazer, defender ou rebater propostas. E quanto às causas judiciais, essas eram dirimidas por um vasto corpo de jurados eleitos por sorteio entre cidadãos voluntários sem qualquer requisito prévio. Não havia, portanto, nem juizes, nem políticos profissionais, como há hoje. Logo, quem quisesse ver aprovada a sua proposta na Assembleia ou fazer valer seus direitos num tribunal, tinha que saber usar a palavra para persuadir o respectivo auditório. Não bastava ter razão ou ser inocente. Era preciso, ainda, saber defender publicamente essa razão ou inocência.

Não faz sentido fazer aqui a caracterização rigorosa quer do modelo democrático dessa época quer daquele em que hoje vivemos. Seguramente que nenhum dos dois é perfeito. Mas quando se questiona a natureza democrática do regime ateniense pelo facto de não incluir os escravos, os estrangeiros e as mulheres, convém lembrar que, na prática, as situações de degradante marginalização e exclusão social a que continuamos a assistir são em muitos casos perfeitamente equiparáveis à antiga escravatura. E o mesmo se diga dos estrangeiros e das mulheres que vivem ainda tanto numa fase de conquista e afirmação dos seus direitos de não discriminação e cidadania como na permanente luta pela sua aplicação. Neste aspecto, pelo menos, o sistema antigo talvez tenha sido mais transparente, assumindo desde logo, o que negava. Pelo contrário, o modelo actual faz, por vezes, lembrar uma “democracia de papel” onde a afirmação pública de um conjunto de leis, direitos e princípios nem sempre têm a menor correspondência prática.

Do que não há dúvida é que, embora subordinada a diferentes contextos históricos e culturais, a liberdade é a bandeira comum que em ambos os modelos se afirma num contexto de igualdade de direitos e autonomia de expressão. E essa é a primeira condição, uma condição externa, para que a retórica seja possível: a “liberdade de contexto”. É esta que “faz do diálogo um verdadeiro diálogo, em que cada um pode criticar os argumentos do outro contanto que produza os seus” *. A segunda condição, uma condição interna, é aquilo a que chamo “liberdade interlocutiva”. Porque o facto de um confronto de opiniões decorrer em ambiente democrático, não garante ainda que de uma situação retórica verdadeiramente se trate. Para isso, é preciso que os intervenientes ajam de boa fé, se respeitem e concedam a palavra a todas as objecções. Uma condição, pois, de recorte acentuadamente ético.

Pode então dizer-se que, não sendo condição suficiente, a liberdade que a democracia assegura é, no entanto, necessária à retórica. Tão necessária, no mínimo, como a retórica o é em relação ao exercício e à manutenção da própria democracia. Sylvain Auroux e Yvone Weil, por exemplo, no seu “Dicionário de Filosofia”, não hesitam em ligar a instauração da retórica à prática da discussão política na Antiga Grécia. Mas é Tito Cardoso e Cunha quem melhor descreve a raiz democrática da retórica: “É sempre preciso uma situação de democracia, de reconhecimento da igualdade de situação dos interlocutores e, sobretudo, de reconhecimento do outro como capaz de receber os meus argumentos e ser convencido por eles. Só assim se pode ter um discurso retórico. Só uma situação democrática o permite. Por isso é que não é por acaso que, historicamente, o termo retórica aparece pela primeira vez nos gregos, na democracia ateniense”

É pois este regime de liberdade da retórica, que, afastando o recurso quer à violência quer ao poder ditatorial, lhe pode conferir um lugar proeminente no exercício da própria cidadania. Mas para isso, evidententemente, seria necessário que a retórica deixasse de ser um exclusivo de alguns, dos homens de marketing, das vendas, da publicidade, da política ou dos media para passar a integrar a competência argumentativa, não apenas dos escritores ou oradores, mas também dos seus leitores ou ouvintes. Não apenas de alguns eleitos mas dos cidadãos em geral. Porque “Numa cultura democrática as diferentes opções de cada qual pressupõem igualdade de acesso à compreensão dos saberes, nomeadamente, dos que respeitem ao acto comunicativo. E deste ponto de vista, o conhecimento retórico não pode nem deve constituir-se como excepção” **. Mas aí... a retórica já é outra.

* Reboul, O., (1998), Introdução à Retórica, S. Paulo: Martins Fontes, p. 231
** Sousa, A. (2003), A Persuasão, Covilhã: Editora Universidade da Beira Interior, p. 208