25 outubro 2003

Retórica & Artifícios

O Pedro Caeiro, no seu post “ARTIFÍCIOS DE RETÓRICA”, no MarSalgado, interpela-me sobre o “mecanismo retórico” pelo qual o orador decide “adjectivar possíveis opositores de trogloditas ou cavernícolas, assim esvaziando previamente o efeito do eventual uso do termo” contra ele mesmo. É certo que apenas me pergunta se este mecanismo é conhecido e se tem algum nome técnico, ao mesmo tempo que avança com uma possível designação bastante lógica: “neutralização por antecipação”. Mas como hoje é sábado e o tempo lá fora está como se sabe - pelo menos, aqui, no Porto – peço ao Pedro permissão para impessoalizar a sua questão de modo a vincar algumas das ideias gerais que presidem à retórica crítica contemporânea. Insisto: não se trata de uma resposta ao Pedro, mas antes de aproveitar o seu simpático post para, generalizando, tentar delimitar o que recai ou não sobre o âmbito da retórica.


“Artifícios de retórica"

Esta expressão só faz sentido na estrita medida em que todos os usos de linguagem (retóricos ou não) comportam artifícios (no sentido de engenho e não de ardil). E isto porque a retórica não é, nem teria que ser, o terreno exclusivo ou privilegiado dos artífícios de linguagem (muito menos dos de raciocínio). Por exemplo, as próprias figuras de estilo só são bem-vindas (que o mesmo é dizer, só se assumem como figuras retóricas) quando se mostram relevantes do ponto de vista argumentativo.


“tornar pública uma ideia”

Quando a intenção é apenas a de tornar pública uma ideia, ainda não se pode falar de retórica, pois daí não decorre o deliberado propósito de persuadir alguém (indispensavel à retórica).


“receio que, em virtude dessa minha opinião, outros que dela discordem venham a considerar-me, muito justamente, um troglodita ou um cavernícola”

O receio de que os “outros (...) dela discordem”, evidencia que, de facto, não é a própria discordância (de ideias) que se receia mas sim a possibilidade dos discordantes insultarem. Ora a retórica trata de argumentos e contra-argumentos. Não trata de insultos e contra-insultos.


“ao expressar a minha ideia, trato de simultaneamente adjectivar possíveis opositores de trogloditas ou cavernícolas, assim esvaziando previamente o efeito do eventual uso do termo contra mim”

Podemos ver neste procedimento como que uma aplicação da conhecida máxima futebolística “o ataque é a melhor defesa”. Só que no futebol, como na argumentação, nem sempre esta táctica leva ao resultado esperado, maxime quando o atacante constrói uma jogada perigosa mas já para além das “quatro linhas”. E é justamente isso que sucede quando o orador insulta os possíveis opositores mesmo antes destes se pronunciarem livremente. Porquê? Porque está, desse modo, a “sair do terreno de jogo” da retórica ou argumentação que, naturalmente, não é um campo de confronto de pessoas mas sim de apresentação e debate de ideias, propostas ou soluções. Ou seja: trata-se de uma “jogada baixa” e argumentativamente gratuita porque não acrescenta qualquer razão fundante ou probatória da ideia que se quer tornar pública. E, sendo assim, um interlocutor nimimamente preparado não terá qualquer dificuldade em denunciar publicamente esse “fugir ao assunto”, àquilo que realmente deveria estar em discussão. Resultado mais que provável: “pior a emenda do que o soneto”.

Por outro lado, o que pode levar um orador a imaginar que chamando troglodita a alguém esvazia “previamente o efeito do eventual uso do termo” contra ele? No caso de uma situação a dois, seguramente que tal não acontecerá pois não é por um deles tomar a iniciativa de “chamar nomes” ao outro que vai impedir uma reacção eventualmente grosseira ou agressiva. Pelo contrário, parece razoável admitir que isso só vá lançar mais achas para a fogueira.

Sendo assim, somente nos casos de debate público se poderia esperar algum benefício do recurso ao insulto. Porque numa situação pública, os intervenientes directos no debate estão sujeitos à observação de todo o auditório e é a este que cabe a palavra final não só sobre o assunto em questão como também sobre o “modus operandi” de cada orador. Logo, é de admitir que quem tome a iniciativa de chamar trogloditas aos presumíveis discordantes, o faça com o intuito de os desqualificar e assim desvalorizar os seus esperados insultos. E deste ponto de vista, não há dúvida de que algum efeito positivo emergirá, já que ser insultado por trogloditas pode até ser levado à conta de um grande elogio. Mas este é só um dos lados do problema. O outro, menos optimista, é o que veremos a seguir.


“Este mecanismo retórico é conhecido actualmente, ou seria preciso escavar na paleontologia da arte? E tem algum nome técnico? A mim só me ocorre qualquer coisa como "neutralização por antecipação".

Não sei da existência de uma designação técnica específica para o “mecanismo” a que se refere o Pedro Caeiro. De resto, o conjunto de figuras, mecanismos, técnicas e estratégias argumentativas é tão numeroso e variado que desmobiliza o mais fervoroso adepto da taxinomia. Mas a estrutura geral do procedimento, essa é bem conhecida. Tecnicamente, trata-se de uma das mais grosseiras variações do famoso argumentum ad hominem que, apesar da designação, de verdadeiro argumento nada tem. No plano lógico, é uma falácia. No plano ético, um comportamento abusivo ou censurável. É uma falácia porque foge ao assunto e não se sustenta em razões. É abusivo ou censurável porque constitui um “ataque à pessoa” e não às suas ideias.

Podemos então retomar agora o analítico “deve e haver” relativo ao recurso à ofensa ou insulto, como técnica de obter vencimento para as ideias que propomos ou defendemos. É que, por natureza, o auditório a tudo e a todos observa: quem argumenta e quem aprecia ou debate a argumentação mas também quem invectiva e quem é invectivado; quem exibe ou não um raciocínio logicamente válido ou consistente mas também quem age de modo eticamente censurável. Logo, o orador que toma a iniciativa de insultar os possíveis discordantes, não só procede abusivamente como perde, logo aí, a possibilidade de vir a desqualificar quem o insulta. Porque nessa altura, é a sua própria credibilidade que já se encontra afectada. Com esse gesto menos feliz, acaba por se colocar a par de quem o iria ofender e a quem, muito curiosamente, agora bastará permanecer calado para se fazer passar por vítima e capitalizar assim a adesão do auditório. O que quer dizer que, em termos argumentativos, chamar “nomes feios” ao interlocutores discordantes, pode ser um desastre...