15 maio 2004

Não vi a reportagem

José Magalhães viu numa reportagem da SIC, no domingo passado, que certa empresa americana está a tentar obter autorização legal para poder implantar microchips sob a pele (dos seus clientes). Esses microchips, do tamanho de um grão de arroz, assegurariam (entre outras finalidades), a identificação e até a realização de pagamentos (adeus cartões de crédito!).

Foi este interessante tema que o nosso conhecido deputado trouxe à reflexão no seu "Ciberscópio.pt" no suplemento "Bits" do JN de ontem, onde deixa claramente ditas as suas reservas à aplicação desta nova tecnologia, não só em humanos, como também a produtos comercializáveis, já que, mesmo no que respeita a estes últimos, colocam-se "problemas que as autoridades de protecção de dados estão a estudar, para evitar controlos abusivos de parte dos consumidores".

Fiquei com muita pena de não ter assistido a essa reportagem, até porque, a avaliar pelo excelente artigo de José Magalhães, está em causa analisar as repercussões éticas do futuro tecnológico, tópico principal do meu livro "O homem com medo de si próprio".

Ao ritmo a que o actual desenvolvimento técnico-científico se processa, o presente torna-se cada vez mais fugaz, chegando a ser confundido com mera antecipação de futuros possíveis. Ora um desses futuros pode ser, desde já, antecipado, mesmo sem se recorrer à ficção. Basta que imaginemos que tipo de mundo humano resultaria da junção desta tecnologia de controlo (que José Magalhães jocosamente equipara ao implementar de uma "Via Verde" na testa) a uma outra tecnologia, agora de natureza robótica, e que levou já o investigador brasileiro Miguel Nicolelis a conseguir pôr duas macacas a mover um braço robótico à distância, apenas com o pensamento, isto é, recorrendo só à força do desejo (das macacas). Quem duvida que estes dois simpáticos animais, a "Aurora" e a "Ivy" de seus nomes, irão ficar célebres na história do homem?

Assinale-se que esta última tecnologia é a primeira a permitir a transformação da actividade eléctrica do cérebro em movimento mecânico e, nas palavras do próprio cientista-inventor, representa uma passo gigante na tão sonhada interface entre o homem e a máquina.

Não é fácil desenhar o quadro em toda a sua extensão e pormenor, mas, ainda assim, do que se pode desde já deduzir, repare-se como teríamos um cidadão imediatamente identificado em todo o lugar e circunstâncias (logo, sem vida privada) e com a possibilidade de agir à distância apenas com a força do desejo. Que mundo seria esse? A que novo tipo de relacionamentos daria lugar, no amor e na amizade, no trabalho e no lazer, na família e na sociedade? Será que não vamos ter onde guardar os nossos desejos mais íntimos? É certo que, nesse caso, despareceriam os recalcamentos. Mas como iríamos encontrar uma desculpa tão "científica" para justificar as nossas falhas?