26 outubro 2004

O futebol e a fé anti-clubista

Era impossível não reparar no orgulhoso “anti-benfiquismo” que Francisco Viegas exibiu para a "bancada central" blogosférica, no seu meio inquietante post "EU E O FUTEBOL, OU CONFISSÕES DE UM HOOLIGAN". "É só futebol. O resto - não me interessa" - diz o Francisco que, inclusivamente, passou a defender o direito à depressão colectiva depois que um ministro lhe disse que era preferível que o Benfica ganhasse um campeonato para que a moral do país levantasse. "É irracional. Não encontro explicação", reconhece. E "pronto". Estamos entendidos: é só futebol. O resto não lhe interessa. Bem tentou o leitor Hugo Jorge sensibilizá-lo para a possibilidade da "sua postura e aquilo que escreve, enquanto figura pública que é" contribuir para “manter a fogueira acesa” mas o Francisco não esteve para grandes "contenções de bola": ignorando o reparo, contra-ataca com um confessado “hooliganismo de trazer por casa”. Mas que chatice quererem que explique o que não tem explicação possível. É só futebol, diz. Nada mais.

O Benfica joga contra uma equipa de outro país? Francisco considera que mesmo nesse caso o Benfica é que é “de fora” e “torce” pela equipa estrangeira. Poderia este descarado anti-benfiquismo ficar a dever-se apenas a alguma incontida emoção de momento. Mas não é disso que se trata. Do que se trata é de uma decisão bem pensada, como o atestam as suas próprias palavras: “Eu fui holandês durante o PSV-Benfica. No dia do Anderlecht-Benfica senti-me sócio dos belgas desde a infância”. E não se vê logo que afirmações como estas são potencialmente explosivas para os sócios e simpatizantes do clube visado e que, de uma ou de outra maneira, podem contribuir para que os adeptos em geral encarem o simples adversário como um inimigo a abater?

Por muito irritantes que sejam “as maratonas televisivas antes e depois dos jogos”, nada parece mais impróprio “para gente civilizada, para pessoas sensatas e para o jornalismo em geral” do que dar testemunho público de uma ideologia desportiva que, passando ao lado do proverbial “que vença o melhor”, acaba antes por valorizar o lado mais sombrio de toda a competição: a humilhação, a vingança, o mal-querer e, em muitos casos, o ódio. Ora todos sabemos como a coisa está já demasiado feia no actual panorama futebolístico. Ainda nesta última semana, na sua crónica da “Sábado”, Pacheco Pereira chama-lhe “reino da selvajaria” e liga-o ao “atraso miserável dos nosssos costumes, com a colaboração activa das melhores forças vivas da nação” (falta saber a quem se refere). Alberto Gonçalves, por sua vez, afirma na mesma revista, que “Ódio a sério é aquilo a que se assiste no futebol português” e sugere até que a selvajaria passou já a ser encarada pelo povo do futebol como mais uma atracção para ir ao estádio. Para ver e, se possível, também para participar. Não será este estado de coisas suficientemente preocupante para justificar uma cultura desportiva sem fundamentalismos competitivos?

O Francisco argumenta com o exemplo dos amigos. Mas não está em causa o relacionamento com familares ou amigos onde até as palavras aparentemente mais ofensivas podem não passar de uma manifestação de carinho ou elogio. Não, não são as apostas, nem as provocações ou demais brincadeiras clubísticas, tão naturais entre amigos, que podem legitimar os “anti-qualquer coisa” futebolísticos. Além do mais, porque, como se sabe, a sociedade está longe de ser ou de funcionar como um grande grupo de amigos. Importaria, por isso, saber se tais “anti-clubismos” resistirão a algum crivo minimamente racional e, já agora, até que ponto a sua ostensiva manifestação pública favorece a instauração de um clima de paz social e desportiva. Repare-se na linguagem bélica a que, ainda na edição do Público de sábado, Miguel Guedes teve de recorrer para retratar a actual situação do nosso futebol: “Despojos de guerra – A seguir a uma semana de guerrilha, instala-se a depressão do pós-guerra. Uma espécie de “stress” pós-traumático.” Eloquente, nao é?

Devo confessar que nunca percebi porque deve um adepto complementar o natural desejo de que o seu clube vença e seja o melhor em cada jogo, com a “ganância” de querer que aconteça sempre o pior possível ao adversário, que é o que se passa com todos os “anti-clubismos”. Se o seu clube ganha os jogos que se propõe ganhar, que melhor razão teria para fazer a festa? Mas não. O “supremo gozo” será ver o adversário esmagado por tudo e por todos (mesmo por equipas de outro país). Bem se pode dizer que aqui não há Levinas que nos salve. Chegando o futebol, parece que a fraternidade entre iguais se esfuma, enquanto pressuposto incontornável da cidadania. É isso. O futebol tudo pode “autorizar”. Até uma eventual suspensão ética. Mas nesse caso, a que nobres valores e sentimentos ficaríamos associados? Dir-se-á que não há futebol sem paixão, sem expectativa, sem catarse ou sem festa e que nele, como acontece, de resto, em outras áreas do espectáculo e da própria vida, a emoção está, regra geral, acima da razão. É verdade. Repare-se porém, que nenhuma das restantes áreas ou actividades, por mais emocionantes que sejam, nos conduzem à mesma desalmada clubite que se observa no futebol. Talvez então que o verdadeiro problema do futebol não esteja na presença da emoção, mas sim, na ausência de razão. E daí que Francisco Viegas termine o seu post com um “recuso-me a explicar”. Pudera. Como explicar o que não tem explicação?