12 novembro 2004

Polémica sobre o jornalismo desportivo

É notório que o provedor do JN e o editor de desporto do mesmo jornal têm um entendimento muito diferente do que deve ser o jornalismo desportivo. Se o primeiro critica o facto do jornal dizer num dia que a "bola tinha entrado e no outro dia [que] não tinha entrado", o segundo chega ao ponto de afirmar que "o JN não tinha nada que explicar porque é que isso aconteceu". E adianta as suas razões: é que "Nenhum jornalista vincula o jornal quando escreve uma crónica de futebol" e, além disso, "uma crónica de futebol não é uma reportagem, nem uma notícia". Ao que o provedor contrapõe que "A crónica jornalística é um género demasiadamente rico para ser etiquetado como mera opinião" .

O provedor aproveita a polémica para promover uma reflexão sobre o "jornalismo centrado no fenómeno desportivo" e convida ao debate sobre um conjunto de importantes questões (umas mais gerais, outras mais específicas), entre as quais se situa a dificuldade em determinar a que género jornalístico reporta uma “crónica de futebol”: reportagem? notícia? artigo de opinião? Já conhecemos a resposta do editor: a crónica de futebol não passa de um exercício jornalístico de opinião. E tanto assim é que, diz, o jornal (e já agora, o jornalista) até pode dar-se ao luxo de, sobre o mesmo facto, dizer hoje uma coisa e no dia seguinte precisamente o contrário, sem que disso tenha que dar qualquer explicação ao leitor.

Ora é precisamente a justificação dada pelo editor que me parece bem mais condenável do que qualquer eventual falha editorial. E isto, porque assenta no pressuposto de que se a crónica jornalística recair no domínio da opinião, já o seu autor estará a salvo de quaisquer críticas, quanto à veracidade do que escreveu. O que é absurdo. Talvez, por isso, que o provedor pudesse ter ido mais longe do que foi, quando se quedou por uma recusa de que a crónica jornalística sobre futebol se circunscreva à mera opinião. Porque tanto quanto me apercebo, do que se trata não é de encontrar o registo taxionómico mais adequado para a crónica jornalística mas sim de averiguar, qualquer que seja o género escolhido (notícia, reportagem ou artigo de opinião), se é admissível que o jornalista (ou o jornal) relate como certo o que é duvidoso e que, uma vez detectado o erro, não o assuma perante o leitor que nele confiou. Que foi o que agora aconteceu e motivou o oportuno reparo do provedor. Um reparo, aliás, tão comedido que até correu o risco de ser mal interpretado, pois quando se afirma que a crónica de futebol “não dispensa o esforço do rigor e do equilíbrio” para melhor sublinhar que não se trata de mera opinião, sempre se pode deixar no ar a falsa ideia de que se a crónica fosse simplesmente “opinião” já seria mais tolerável prescindir de um tal grau de exigência. Uma falsa ideia sobre a qual já escrevi:

[A dupla equiparação da subjectividade à opinião e da objectividade à notícia] funda-se na equívoca crença de que a notícia se situa, por assim dizer, no reino da objectividade jornalística enquanto a opinião - seja a do editorial, do artigo ou do comentário – pode dar-se ao luxo de ser menos rigorosa, precisamente porque emerge da subjectividade do respectivo articulista e representa apenas a sua opinião. Ao que, se poderia ainda acrescentar, o fundamento da notícia é, regra geral, verificável e o da opinião, não. Pensamos que não se justifica tal entendimento. Por um lado porque, como refere Mar de Fontcuberta, embora haja fundamentalmente dois grandes tipos de géneros jornalísticos - os que servem para dar a conhecer os factos e os que dão a conhecer as ideias ou opiniões (*) - a verdade é que frequentemente se misturam numa mesma peça, sendo difícil identificá-los. Basta ver o que ocorre no chamado jornalismo de interpretação onde o leitor encontra os juízos de valor (comentário) ao lado da narração dos factos (relato), quando não mesmo, no interior da própria narração (**). Depois, porque sobre o jornalista recai sempre a mesma exigência ética de respeitar a verdade, quer quando relata um facto quer quando o comenta. E se todos os factos requerem interpretação, não é menos verdade que esta pode e deve representar uma permanente tentativa de passar da subjectividade à objectividade. O que a subjectividade não pode é continuar a ser vista como albergue de erros grosseiros, manipulações evidentes, atropelos lógicos ou pura discricionaridade, nem servir de desculpa para opiniões sem a mínima justificação racional. Porque sendo embora condição do próprio conhecimento, só objectivamente se pode afirmar sempre que se apresente como portadora de alguma razão.

* Fontcuberta, M., (1999), A notícia, Lisboa: Editorial Notícias, p. 80
** ibidem, p. 81



in "O ESTATUTO DA SUBJECTIVIDADE NO CAMPO JORNALÍSTICO"
(Comunicação ao I Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos, 10 Abril 2003)