23 junho 2005

Excertos de um livro não anunciado (241)

Tomando por base as críticas que Platão fazia aos poetas e sofistas do seu tempo (*), por se empenharem em fazer passar como verdadeiros discursos desprovidos de qualquer verdade ou até verosimelhança, que apresentavam como solução aquilo que permanecia um problema, Meyer identifica tais práticas com uma ostensiva redução ou mesmo anulação de toda a interrogatividade discursiva. A origem da manipulação retórica consistirá por isso, basicamente, numa deliberada confusão entre a resposta e a questão, com o fim de fazer tomar por concludente e razoável o que, na realidade, permanece problemático. O grande alcance desta intuição de Meyer é o de nos fornecer um critério relativamente expedito de distinguir os usos da retórica. Recordemos que à luz da teoria da interrogatividade, qualquer proposta ou tese em discussão se mantém mais ou menos incerta, pois é precisamente essa sua incerteza que justifica a necessidade de discussão. Aliás, nem mesmo depois de obtido o assentimento do auditório, essa maior ou menor incerteza desaparecerá totalmente, na medida em que qualquer escolha é sempre uma escolha provisória e o consenso que a torna possível, ao invés de lhe conferir uma evidência indiscutível ou certeza absoluta (que não possuía até aí), traduz antes o reconhecimento de uma problematicidade que nenhuma resposta esgotará, pois esta, obrigatoriamente situada no campo do preferível, sempre fica sujeita a um novo questionar e a sucessivos desenvolvimentos. É pois no seio desta questionação ou interrogatividade em contínuo de todo o discurso retórico que se pode descortinar de que lado está o orador: do lado da retórica negra, manipuladora, ou do lado da retórica branca, de uso crítico.

(*) Atente-se no violento ataque que Platão faz à retórica na sua obra Górgias, pp. 47-82