28 novembro 2005

O perigo da intolerância democrática

1.
Não procede o (meu) argumento de que sendo a Constituição revisível, não faz sentido proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia – diz o Pedro Santos Cardoso. Mas eis que, quando já me preparava para ripostar, leio imediatamente a seguir que, afinal, sempre reconhece que uma crítica à democracia é perfeitamente possível. Bom. Se há coisa a que, numa argumentação, qualquer das partes está obrigada, é a respeitar a lógica do seu próprio raciocínio. Sigamo-lo então. Se o Pedro admite que uma crítica à democracia é perfeitamente possível, então terá igualmente de admitir que não faz sentido proibir, à partida, uma crítica à democracia. Isto parece-me tão claro que, salvo melhor opinião, desqualifica, por si só, a alegação de que o meu argumento não procede. Porque, insisto, estamos aqui ainda no domínio da pura lógica argumentativa.

2.
Reparo, contudo, que, ao mesmo tempo que admite a crítica à democracia, o Pedro escreve que “só o ataque não é permitido”. Há então nesta parte algum equívoco de recepção pois no meu post, mobilizei os dois termos, “crítica” e “ataque”, numa relação de total sinonímia. Um e outro referem-se apenas a vozes discordantes (e não a bombistas com cinto de explosivos, por exemplo) que se apresentam no domínio da liberdade de expressão e discussão doutrinal. E foi também nestes precisos termos que o primeiro dos três requisitos, preconizados por Ralf Dahrendorf como pilares da democracia, me suscitou algumas reservas.

3.

O facto de duvidar de que a intolerância para com os adversários da democracia seja a melhor maneira de defender e preservar esta última, não é a mesma coisa que advogar a impunidade de seja quem for (e não apenas os adversários da democracia) no caso de infringir a lei. O questionamento crítico do texto constitucional não desobriga ninguém do seu cumprimento enquanto estiver em vigor, nem tal é minimamente sugerido no meu post. Não se trata por isso de radicalizar a tolerância como valor absoluto mas, pelo contrário, de denunciar o carácter absoluto (e acrítico) da preconizada intolerância para com os adversários do regime. E, já agora, permito-me discordar também de quando afirma que “o argumento de que o ataque à democracia não deveria ser proibido, uma vez que a Constituição é revisível” teria que ser levado “às últimas consequências” (*).

4.
O que esse meu argumento teria que levar era à consequência que foi invocada e para a qual se mostra idóneo: a de mostrar que se a própria lei fundamental de um país democrático é revisível é porque a democracia que a enforma se oferece ao questionamento. Até porque se um regime democrático não for receptivo a sucessivos melhoramentos e actualizações ao mundo da vida, mais tarde ou mais cedo, estará condenado. O mesmo se diga se não possuir argumentos para se defender e tiver que enveredar pela intolerância para com os seu críticos ou adversários, quiçá, pela perseguição. A intolerância e a perseguição ideológicas são marcas distintivas da ditadura, não da democracia. E se, como reconhece Ralf Dahrendorf, até o primado da lei é susceptível de levar a uma ditadura sob a forma de democracia, por maioria de razão, o mesmo pode vir a acontecer se a intolerância para com os adversários se institucionalizar, como parece defender o mesmo Dahrendorf.

5.
No mais, sinceramente, não esperava que entre interlocutores com formação jurídica pudesse ser confundido o plano conceptual de caracterização da democracia com o da esfera de aplicação das suas leis, nem o de uma preocupação eminentemente legislativa com o da função judicial. Um passo mais e o elástico comparativo chegaria à tolerância no cumprimento da pena. Não, não é por aí. Como o Pedro Cardoso bem sabe, nada no meu post permitia tal extrapolação. O que permitia era, antes, concluir que assim como o facto da Constituição ser revisível significa, entre outras coisas, que está aberta ao questionamento ou crítica, também a democracia e cada uma das leis que a asseguram, seja a que proíbe o homicídio, o sequestro, a injúria ou qualquer outra, podem e devem ser democraticamente questionadas e, se necessario, revistas. A menos que da lei se tivesse uma concepção divina, o que não é o caso do Pedro, claro. Não se confunda, pois, a liberdade de rever ou modificar uma lei - que foi ao que me referi - com o eventual laxismo axiológico do seu desenho normativo – que, sou levado a crer, foi para onde o Pedro me “quis levar”.

(*) Sabe-se como “esticar” até às ultimas consequências cada palavra ou afirmação do interlocutor leva à destruição pura e simples das condições de possibilidade da própria comunicação.


Publicado n'O Eleito.