13 junho 2008

Verdade retórica

A verdade maltrata as pessoas.

Robert Musil
O homem sem qualidades II, Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 168

Não existe como que uma espécie de delicadeza de alma na figuratividade, um respeito que permite evitar sem combater, recusar sem negar? Tudo leva a crer que a manipulação consentida assenta numa dupla linguagem que não engana, e mesmo de que se tem necessidade para diferir a decisão própria sem ter de enfrentar directamente o outro. Um grau mais de liberdade, se se quiser, na qual só os ingénuos verão uma traição à verdade una e indivisível, de que os receptores da mensagem seriam vítimas involuntárias.

Michel Meyer

"As bases da retórica", in Carrilho, M. (org.), Retórica e Comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 69


Duas citações para ilustrar a mesma verdade retórica. Uma verdade que sem ofender o seu estatuto metafísico, surge tematizada, sobretudo, do ponto de vista comunicacional. E o problema dos problemas começa precisamente aqui. Que lugar ocupa a verdade na comunicação? Bastará falar verdade para comunicar adequadamente? No romance de Musil, quando Agathe diz ao irmão Ulrich que "a verdade maltrata as pessoas", é ainda a fragilidade da nossa maquinaria perceptiva que é posta em questão. Porque a verdade não deveria, logicamente, perturbar-nos, aborrecer-nos e, no entanto, tantas vezes magoa e faz sofrer. A verdade maltrata as pessoas, especialmente quando é comunicada sem o cuidado prévio de antecipar a reacção daqueles a quem nos dirigimos. Daí que a figuratividade surja em Meyer como uma “espécie de delicadeza de alma” , uma dupla linguagem que evita o enfrentamento do outro, o exercício de uma liberdade de dizer sem, com isso, trair a verdade. Uma verdade, bem entendido, que não maltrate as pessoas.