01 março 2009

O homem.com medo de si próprio (13)

Assiste-se a um generalizado processo de abstracção progressiva das artes e das ciências, em que, para além dos círculos “restritos dos chefes de fila de competência muitas vezes internacional, que realmente criam e produzem, só poderá haver uma minoria de leigos interessados e realmente preparados para as compreender” [30]. Sempre orientado para a estreita relação da cultura moderna com a técnica, Gehlen diz que entre ambos os domínios, o problema da exequibilidade é o que ocupa a posição central. O que verdadeiramente interessa é “variar os meios de representação, os modos de pensamento e os processos, comprovando-os experimentalmente, pondo-os em jogo até esgotarem todas as possibilidades e observar o que daí resulta” [31]. O importante agora é descobrir tudo o que se pode fazer com certas técnicas e métodos conhecidos, os quais variando constantemente sem qualquer finalidade prévia, asseguram uma experiência multi-modal e sucessiva.

Tudo isto em obediência a uma atitude experimental, que, inscrevendo-se no correspondente ambiente científico, vai estender-se aos próprios domínios das ciências do espírito, fazendo com que se esbata a diferença metodológica até aí observável entre estas e as ciências da natureza. Encontramo-nos assim num mundo científico que já nada tem de clássico e no qual nenhuns preconceitos subsistem relativamente às qualidades dos objectos em questão. Verifica-se um cada vez maior afastamento do concreto e assiste-se ao movimento geral de desconcretização dos objectos, que Gehlen assim descreve: “a penetração do espírito experimental em toda a espécie de artes e ciências conduz necessariamente a uma deturpação dos objectos, a despreocupadas decomposições e recomposições dos conteúdos, determinadas exclusivamente pelo método escolhido. Inevitável também e necessária é a radical racionalização dos objectos, ocasionada por este processo: perdem o carácter sensível, tornam-se mais abstractos, menos concretos e por fim ‘autónomos’, de um modo dificilmente descritível a partir de fora. Os resultados integralmente exactos não podem ser traduzidos por palavras ou são apenas evidentes durante a operação metódica”
[32]
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[30] Arnold Gehlen (s/d), A alma na era da técnica, Lisboa: Livros do Brasil, p 37
[31]
ibidem, p. 39
[32] ibidem, p. 43


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 25-26

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