15 fevereiro 2009

O homem.com medo de si próprio (12)


A progressiva abstracção

Vimos as raízes profundas da técnica e o fundo instintivo e inconsciente que está por detrás da sua evolução: o homem, como que se submetendo a uma espécie de lei vital, esforça-se por ampliar o seu poder sobre a natureza. Não se pode porém – diz Gehlen - explicar a técnica só como resultante de uma ânsia de poder inerente ao homem, pois isso, ainda que certo, seria muito insuficiente. O que se passa é que, para além disso, “o homem procura objectivar-se a si próprio: encontra no mundo exterior os modelos e imagens do seu próprio ser misterioso e, com a mesma capacidade de ‘auto-alienação’ adjudica a sua acção ao mundo exterior que a retoma e prossegue” [28]
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É daí que vem a estranha fascinação pelo automatismo, pela monótona repetição do idêntico, pelo movimento circular ordenado que originariamente terá descoberto ao contemplar o firmamento. E o pensamento primitivo estava tão profundamente ligado e dependente das leis da técnica sobrenatural, que a vida anímica do homem fatalmente teria que vir a ser atingida pelo fulgurante aparecimento da cultura industrial. Esta surge, realmente, com uma tal amplitude de transformações no mundo que justifica, por si só, uma análise atenta às suas principais características.

Ora o grande traço distintivo da nova cultura industrial é, para Gehlen, a radical intelectualização que se observa nos domínios autenticamente espirituais das artes e das ciências e que corresponde à diminuição do apelo ao concreto, da espontaneidade e da acessibilidade não problemática. É esse panorama que o leva a afirmar estarmos “perante uma das mais raras e maiores transformações da condição humana, perante uma alteração secular, não só dos comportamentos vitais e sociais, mas, mais profundamente ainda, das próprias estruturas da consciência, da própria dinâmica dos impulsos humanos. Vemos hoje em acção o entendimento humano no estádio posterior ao iluminismo, emancipado da moral que o iluminismo julgava nele infundida e que assim se teve de reduzir ao mísero papel de sujeição constante à alçada do produtivo, do realizável e do pragmático” [29]
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[28] A. Gehlen (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 33
[29] ibidem, p. 37


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 25

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