01 março 2009

O homem.com medo de si próprio (13)

Assiste-se a um generalizado processo de abstracção progressiva das artes e das ciências, em que, para além dos círculos “restritos dos chefes de fila de competência muitas vezes internacional, que realmente criam e produzem, só poderá haver uma minoria de leigos interessados e realmente preparados para as compreender” [30]. Sempre orientado para a estreita relação da cultura moderna com a técnica, Gehlen diz que entre ambos os domínios, o problema da exequibilidade é o que ocupa a posição central. O que verdadeiramente interessa é “variar os meios de representação, os modos de pensamento e os processos, comprovando-os experimentalmente, pondo-os em jogo até esgotarem todas as possibilidades e observar o que daí resulta” [31]. O importante agora é descobrir tudo o que se pode fazer com certas técnicas e métodos conhecidos, os quais variando constantemente sem qualquer finalidade prévia, asseguram uma experiência multi-modal e sucessiva.

Tudo isto em obediência a uma atitude experimental, que, inscrevendo-se no correspondente ambiente científico, vai estender-se aos próprios domínios das ciências do espírito, fazendo com que se esbata a diferença metodológica até aí observável entre estas e as ciências da natureza. Encontramo-nos assim num mundo científico que já nada tem de clássico e no qual nenhuns preconceitos subsistem relativamente às qualidades dos objectos em questão. Verifica-se um cada vez maior afastamento do concreto e assiste-se ao movimento geral de desconcretização dos objectos, que Gehlen assim descreve: “a penetração do espírito experimental em toda a espécie de artes e ciências conduz necessariamente a uma deturpação dos objectos, a despreocupadas decomposições e recomposições dos conteúdos, determinadas exclusivamente pelo método escolhido. Inevitável também e necessária é a radical racionalização dos objectos, ocasionada por este processo: perdem o carácter sensível, tornam-se mais abstractos, menos concretos e por fim ‘autónomos’, de um modo dificilmente descritível a partir de fora. Os resultados integralmente exactos não podem ser traduzidos por palavras ou são apenas evidentes durante a operação metódica”
[32]
.
__________
[30] Arnold Gehlen (s/d), A alma na era da técnica, Lisboa: Livros do Brasil, p 37
[31]
ibidem, p. 39
[32] ibidem, p. 43


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 25-26

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15 fevereiro 2009

O homem.com medo de si próprio (12)


A progressiva abstracção

Vimos as raízes profundas da técnica e o fundo instintivo e inconsciente que está por detrás da sua evolução: o homem, como que se submetendo a uma espécie de lei vital, esforça-se por ampliar o seu poder sobre a natureza. Não se pode porém – diz Gehlen - explicar a técnica só como resultante de uma ânsia de poder inerente ao homem, pois isso, ainda que certo, seria muito insuficiente. O que se passa é que, para além disso, “o homem procura objectivar-se a si próprio: encontra no mundo exterior os modelos e imagens do seu próprio ser misterioso e, com a mesma capacidade de ‘auto-alienação’ adjudica a sua acção ao mundo exterior que a retoma e prossegue” [28]
.


É daí que vem a estranha fascinação pelo automatismo, pela monótona repetição do idêntico, pelo movimento circular ordenado que originariamente terá descoberto ao contemplar o firmamento. E o pensamento primitivo estava tão profundamente ligado e dependente das leis da técnica sobrenatural, que a vida anímica do homem fatalmente teria que vir a ser atingida pelo fulgurante aparecimento da cultura industrial. Esta surge, realmente, com uma tal amplitude de transformações no mundo que justifica, por si só, uma análise atenta às suas principais características.

Ora o grande traço distintivo da nova cultura industrial é, para Gehlen, a radical intelectualização que se observa nos domínios autenticamente espirituais das artes e das ciências e que corresponde à diminuição do apelo ao concreto, da espontaneidade e da acessibilidade não problemática. É esse panorama que o leva a afirmar estarmos “perante uma das mais raras e maiores transformações da condição humana, perante uma alteração secular, não só dos comportamentos vitais e sociais, mas, mais profundamente ainda, das próprias estruturas da consciência, da própria dinâmica dos impulsos humanos. Vemos hoje em acção o entendimento humano no estádio posterior ao iluminismo, emancipado da moral que o iluminismo julgava nele infundida e que assim se teve de reduzir ao mísero papel de sujeição constante à alçada do produtivo, do realizável e do pragmático” [29]
.
___________
[28] A. Gehlen (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 33
[29] ibidem, p. 37


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 25

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12 janeiro 2009

O homem.com medo de si próprio (11)


O advento do automatismo

Mas se a técnica chegou tarde a tais domínios, a verdade é que, pelo menos nos últimos tempos, o fez com uma pujança assinalável. Tudo começou com as incríveis novas possibilidades abertas pela automação, onde se objectiva o próprio ciclo de acção incluindo as funções intermediárias conscientes, de controlo e direcção. Como diz Gehlen, objectiva-se simultaneamente “a parte do processo vital fisiológico que funciona sob a forma de processos cíclicos sensório-motores e a outra de nível superior em que se produzem as regulações retransmitidas automaticamente, quimicamente, por exemplo” . Surgem assim os aparelhos de regulação técnica por transmissão, com base no princípio de que o sistema não varia o seu funcionamento por um comando exterior, mas sim, em função dos resultados obtidos. Trata-se de mecanismos concebidos para regressarem sempre a si próprios num ciclo fechado e calculados de tal modo que a corrente que atravessa todo o sistema é desviada numa ínfima parte para a regulação dessa mesma corrente de energia.

Gehlen acentua porém que este ciclo regulador não é apenas uma cópia do ciclo de acção, pois além das acções humanas, diz, existem em nós inúmeras regulações intracorporais obedecendo ao mesmo princípio estrutural, como no caso do sistema que regula a tensão sanguínea que é um ciclo fechado de acção regressiva. O ritmo respiratório, a concentração do sal, o doseamento do açúcar no sangue e a temperatura do nosso corpo, são apenas mais alguns exemplos dos inúmeros estados biológicos que obedecem ao mesmo princípio regulador.

Apesar de todas estas semelhanças entre o autómato e o orgânico, não se pode dizer, como adverte Gehlen, que o ciclo de regulação técnica permite conhecer a própria vida, nem subentender que esta última seja de natureza mecânica. Verifica-se tão somente a existência de uma isomorfia. Uma semelhança de formas, por certo, mas nenhuma igualdade substancial. O que se passa é que com o progresso da técnica o homem transfere para a natureza inanimada (aparelhagem técnica criada pelo próprio homem) um princípio de organização que já vigora em diversos pontos do seu organismo. E, como mais adiante se verá, a transferência deste princípio para a natureza inanimada e exterior ao homem, veio a revelar-se tão revolucionária e eficaz que acabou por se aplicar a ele próprio. Basta lembrar a série de extensões artificiais (próteses dentárias, oculares, mamárias, cardiológicas, locomotoras, etc.) que, cada vez mais, parecem aproximar o homem de hoje de um futuro homem protésico. É natural, portanto, que João Dias de Deus considere que “os nossos sentidos são hoje muito mais que os nossos sentidos: estão cheios de verdadeiros ‘implantes’ tecnológicos” [27] . (cont.)

___________
[27] J. D. Deus, (2003), DA CRÍTICA DA CIÊNCIA À NEGAÇÃO DA CIÊNCIA, Lisboa: Gradiva, p. 94


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 24

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09 dezembro 2008

O homem.com medo de si próprio (10)

É ainda possível detectar no homem um outro processo de diminuição de esforço, que se reveste, aliás, de importância capital: a tendência para criar hábitos, para formar rotinas, numa palavra, para automatizar o efeito. Ora é precisamente neste contexto que Gehlen defende que a técnica obedece, desde os seus princípios, a determinantes instintivas, inconscientes, vitais, identificando tais características humanas com o princípio da economia de esforço e a tendência para automatizar os efeitos, que se tornam responsáveis pela evolução da técnica. Não que uma qualquer invenção isolada delas derive directamente, pois, por exemplo, o funcionamento de um motor é explicado pelas relações puramente físicas e técnicas. Mas sem dúvida que é “a evolução conjunta da técnica que atesta uma lógica subjacente, inconsciente, mas coerentemente prosseguida, que só se pode descrever por meio dos conceitos da progressiva objectivação do trabalho humano e da crescente diminuição de energia dispendida” [25]. Trata-se de um processo geral que se desenvolve em três graus:

- Primeiro grau: o da ferramenta. É ainda o sujeito que emprega a força física necessária para o trabalho e o requerido esforço intelectual.

- Segundo grau: o da máquina de trabalho e energia. A força física é objectivada tecnicamente.

- Terceiro grau: o do autómato. O próprio esforço intelectual do sujeito é substituído por meios técnicos.

Em cada um destes graus dá-se um processo de objectivação para alcançar determinado fim através de meios técnicos, observando-se a cada vez maior autonomia destes, até que, no terceiro e último grau, esse fim se atinge simplesmente por intermédio do autómato, sem intervenção corporal ou intelectual. Naturalmente que esta fase de automatização é aquela em que a técnica atinge a sua maior perfeição metódica. E é também nesta fase – onde se conclui o processo evolutivo da objectivação técnica do trabalho (cujas origens remontam à pré-história) – que se pode situar a característica mais definidora da nossa época.

Logo se vê, portanto, que não é exactamente a mesma técnica que nos surge em cada um dos respectivos graus de objectivação. No primeiro grau, o da ferramenta, dir-se-á que estamos perante uma técnica artesanal, ainda definível como mero recurso a determinados instrumentos, cuja simplicidade de manejo chega e sobeja para produzir os resultados que se esperam. Já no segundo, o da máquina, a técnica começa a ter que ver com determinado conjunto de processos e metodologias que permitem a aplicação dos conhecimentos científicos quer na investigação, quer na transformação da própria realidade. Por último, o terceiro grau, marcado, como já se viu, pelo automatismo, é o que acabará por se identificar com uma noção de técnica mais actualizada, mais moderna e sofisticada: as novas tecnologias.

O que à primeira vista mais surpreende, porém, é o facto da técnica só muito tarde ter entrado nos domínios que durante milhares e milhares de anos estiveram reservados à magia, ou seja, à técnica sobrenatural, a qual, como se sabe, foi a que primeiro imperou nas épocas em que se conhecia apenas a primitiva técnica da ferramenta. Note-se, porém, que já essa magia pretendia desviar as coisas dos seus caminhos próprios para o nosso serviço, procurando, ainda que inconscientemente, potenciar a eficácia e multiplicar as zonas de alcance da acção da mão humana. [cont.]

[25] A. Gehlen, (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 28

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 23

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03 novembro 2008

O homem.com medo de si próprio (9)


O duplo processo de objectivação e alívio



É esta ligação profunda com os processos rítmicos, periódicos e automáticos do mundo exterior que melhor permite compreender as chamadas componentes instintivas da técnica. Em oposição ao preconceito muito generalizado, nomeadamente nos meios académicos, segundo o qual o comportamento técnico é simplesmente racional e sempre dirigido para determinados fins, Gehlen comunga do ponto de vista de Hermann Schmidt: “a objectivação do trabalho que se opera na técnica é resultante de um processo não consciente que se encontra na espécie e a sua motivação provém da parte sensorial da nossa natureza” [22]. Reforçando ainda mais a ideia destas componentes instintivas que actuam na técnica, Gehlen descreve o homem como um ser voltado para a acção, ou seja, para a modificação do seu mundo exterior, podendo o seu ciclo de acção ser analisado como contendo três etapas: movimento plástico dirigido (primeira), que é depois corrigido pela repercussão do sucesso ou insucesso (segunda) e, finalmente, a automatização como um hábito (terceira). Há, portanto, aqui como que uma implicância reactiva, que Norbert Wiener considera ser uma característica muito geral das formas de comportamento, cujo mecanismo descreve do seguinte modo: “na sua forma mais simples o princípio da implicação reactiva significa que o comportamento foi renovado nos seus resultados e que o sucesso ou insucesso destes resultados influenciará o comportamento futuro” [23].

Gehlen lembra-nos igualmente que logo de início o homem objectiva a sua acção, atribui-a ao mundo exterior, isto é, objectiva o seu trabalho. Vistas então as coisas sob este ângulo, a pedra é, sem dúvida, uma qualificada representante da mão, visto que aparece em vez desta e obtém até um êxito muito superior. Não surpreende, por isso, que Marshall McLuhan (1995) venha defender que o homem age sobre a natureza criando extensões do seu corpo, ou que Edward Hall, como mais adiante se verá, reconheça nesses “prolongamentos do seu organismo”
[24] uma marca distintiva dos restantes animais. O homem passa, assim, do pequeno ciclo do que verdadeiramente domina, para o grande ciclo do que só imaginariamente consegue antever e dominar, o que leva à diminuição do seu esforço na razão directa das massas movimentadas. Por exemplo, se o trabalho com a ferramenta é penoso, já para estabilizar o tempo (ex: o regresso da chuva), bastam algumas fórmulas verbais de mágica eficácia.

Adivinha-se então uma outra lei humana fundamental, a tendência para a diminuição do esforço, que embora possua em si mesma um valor antropológico de geral validade, será aqui analisada somente do ponto de vista das suas aplicações técnicas. Antes de mais, vislumbra-se no homem dois diferentes ciclos de acção: o pequeno ciclo de acção - correspondente à autêntica prática do trabalho que lhe reduz literalmente o esforço físico, e o grande ciclo de acção - o da magia, que evita a sua paralização perante as forças da natureza, ao reduzir, por assim dizer, as coordenadas do mundo a padrões humanos. Por outro lado, se a objectivação do trabalho humano na ferramenta produz um efeito superior ao mesmo tempo que diminui o respectivo esforço, então, como adianta Gehlen, podemos discutir o uso da ferramenta, desde logo, nesta perspectiva de alívio ou redução da penosidade físico-orgânica.
[cont.]
__________


[22] cit. in ibidem, p. 26
[23] ibidem, p. 27
[24] Hall, E. T., (1986), A DIMENSÃO OCULTA, Lisboa: Relógio D´Água, p. 14

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 21-22

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16 outubro 2008

O homem.com medo de si próprio (8)

No mesmo sentido vão os numerosos relatos e documentos que atestam como o intuito predominante e central das práticas mágicas é a necessidade de assegurar a uniformidade do processo natural e de estabilizar o ritmo do mundo, face às naturais irregularidades e excepções. Tudo isso parece ilustrar até onde vai o interesse humano pela uniformidade do processo natural. O que está aqui em jogo é uma necessidade instintiva de estabilidade do mundo ambiente, sendo que, “numa realidade submetida ao tempo e necessariamente mutável o máximo de estabilidade consiste numa automática e periódica repetição do idêntico, tal como aproximadamente se manifesta na natureza” [17]. E sendo assim, é natural que na primitiva concepção da vida, privada que estava de qualquer espécie de conhecimento científico, o mundo (com o homem nele integrado) fosse visto como um processo cíclico, rítmico e automático, isto é, como um automatismo, aliás, animado. Quer isto dizer que as forças mágicas que faziam mover o mundo não eram arbitrárias nem emergiam espontaneamente, antes podiam pôr-se em acção devido à fórmula certa e rigorosamente repetida.

O que pode parecer estranho é como ainda hoje, apesar de toda a racionalização e da nova concepção científica do mundo, continuamos a poder encontrar na astrologia (e afins) um importante vestígio desta ideia arcaica e inata pois “grande parte da clientela dos astrólogos é constituída por numerosos financeiros e políticos que acreditam no prodigioso automatismo rotativo das estrelas e na sua necessária correlação com os destinos do indivíduo” [18]
. Faz todo o sentido, por isso, perguntar: até que ponto essa crença estará tão profundamente enraizada no homem para nele se manter, apesar de todos os desmentidos da razão?

Se alguma ideia se pode retirar daqui, é, seguramente, a de que a fascinação pelo automatismo constitui o impulso pré-racional e estratégico da técnica. Um impulso que se fez sentir primeiramente e durante milénios na magia (ou técnica supra-sensível) até encontrar nos tempos modernos a sua máxima concretização nos relógios, motores e máquinas rotativas de toda a ordem. Este “fascínio do automatismo de uma máquina é totalmente independente do seu rendimento: em grau mais alto, o que se pretenderia seria um perpetuum mobile cuja fidelidade e rendimento consistisse apenas na reprodução do próprio movimento giratório” [19]
.

Sucede que uma fascinação de tal natureza não pode ser simplesmente intelectual, tem de ter raízes mais profundas e, segundo Gehlen, constitui, por assim dizer, um fenómeno de ressonância. Constantemente aprisionado ao enigma da existência e do seu próprio ser, o homem tem de ir buscar a sua auto-interpretação a um não-eu, a algo diferente do humano. Assim, a sua auto-consciência é indirecta e o seu esforço por encontrar uma fórmula para si próprio decorre sempre em relação com o não-humano do qual se separa, em seguida. Ele sempre se sentiu muito impressionado pelos processos rítmicos e periódicos, quer se tratasse da rotação dos astros ou dos hábitos rotineiros e estereotipados dos animais. E isto não é de estranhar pois ele próprio é um automatismo: “é pulsação e respiração, vive dentro e por intermédio de automatismos rítmicos de apropriado funcionamento, tal como estão patentes no movimento do andar, mas sobretudo, na lide e trabalho das mãos, no ‘círculo de acção’ que, partindo da coisa para a mão e para os olhos, se fecha voltando de novo à coisa, em contínua repetição”[20]
. No fundo, fascina-o tudo quanto no mundo exterior de algum modo se assemelhe a essa estrutura própria. E ainda hoje, falar de curso dos Astros ou do andamento das máquinas traduz-se, ao fim e ao cabo, numa “objectivação por ressonância da auto-interpretação de determinados traços essenciais do homem” [21], pois este interpreta o mundo em função da imagem que tem de si próprio e interpreta-se a si, segundo as imagens que forma ou recebe do mundo.

_________

[17] Gehlen, A., (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 24
[18] idem
[19] ibidem, p. 25
[20] idem
[21] ibidem, pp. 25-26

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 20-21

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13 setembro 2008

O homem.com medo de si próprio (7)


A primeira das técnicas: a magia

Durante uma grande parte da sua história, a humanidade não dispôs de mais do que recursos técnicos muito modestos, apesar de corresponderem a invenções altamente engenhosas para a época. Que razões terão estado por detrás deste marcar passo? Eis a questão que Gehlen chama a si próprio para lembrar que durante milhares de séculos o homem de todas as culturas primitivas e de todas as altas culturas como a egípcia, a grega e a romana, estava preso a uma outra ideia muito diferente que era a da possibilidade de uma técnica sobrenatural (aquilo a que hoje chamamos magia). E foi essa magia que desde as épocas pré-históricas ocupou um papel central na concepção do mundo e do homem, sobrevivendo sempre, inclusive, em ambientes adversos, como no caso das culturas monoteístas – tenha-se em vista os processos de bruxas e feitiçarias da Idade Média. Magia que, para Maurice Pradines, pode ser definida como “tentativa para produzir alterações que beneficiem o homem, desviando as coisas dos seus caminhos próprios para o nosso serviço” [15]. Ora, como se pode notar, esta é uma definição que não só abrange a magia como a própria técnica, ou, se quisermos, a técnica sobrenatural e a técnica natural.

Questão intrigante: o que explicará a extraordinária expansão da magia em todo o mundo e em todas as épocas? Gehlen limita-se a admitir que ela radicará em algo de antropologicamente fundamental, já que não se pode tirar outra conclusão quando continuamos a observar práticas mágicas perfeitamente estereotipadas, independentemente de raças e de graus de cultura. Por exemplo, o feitiço da chuva - a orientação ou provocação dos fenómenos meteorológicos - está presente tanto nos indígenas da Nova Britânia, como nos índios de Omaha, bantus das Delagoaba e nos chineses. Há aqui como que um recorrente arcaísmo do pensamento que se tem mostrado verdadeiramente irredutível, mesmo quando confrontado com o assombroso desenvolvimento das mais modernas tecnologias.

Aliás, é o próprio desenvolvimento das tecnologias que acaba por conduzir a questões de ordem mítica que reaparecem hoje com mais força do que a que tinham antes. Compreende-se, por isso, a muito actual observação de Marc Augé: “Definimos, por vezes, a modernidade como a passagem dos mitos de origem aos mitos do futuro, aos mitos escatológicos, a imagens radiosas, ao progresso. Agora, com o desenvolvimento da tecnologia, colocamos questões às quais o pensamento mítico (para não dizer simbólico), aquele que se exprime pelos mitos, de alguma maneira pré-simbólico, dava forma. A versão agradável ou banal desta questão é-nos dada pelos filmes de ficção científica. Muitos só imaginam o futuro tecnológico sob a forma de coisas mais arcaicas”
[16]. [Cont.]
__________
[15] Cit. ibidem, p. 23
[16] Atlan, H., et al (2001), CLONAGEM HUMANA, Lisboa: Quarteto Editora, p. 143

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 19-20


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10 agosto 2008

O homem.com medo de si próprio (6)

Pela frente temos o já clássico problema da neutralidade (ou não) da técnica, uma neutralidade que tanto pode ser entendível no sentido de que se a técnica é neutra então é possível impor-lhe valores morais, jurídicos e outros, como também naquela acepção de que se é neutra, então é neutra relativamente a todos os valores. Ora é da lucidez com que se analise e compreenda este problema da neutralidade que, segundo Bragança de Miranda, dependem as respostas à própria questão da técnica e que, a seu ver, serão tipicamente duas. “A primeira consiste em ‘regionalizá-la’ ou circunscrevê-la, fazendo dela um subsistema de um sistema mais geral, por exemplo, a ‘modernidade’ ou o ‘capitalismo’. A outra insiste na ideia de uma espécie de imperium da técnica que se constrói e revela na história do Ocidente. Evidentemente que no primeiro caso ela seria controlável, bastando controlar o ‘sistema’ que a integra, através da ética, por exemplo; no segundo caso, tudo se complica” [11]. E tudo se complica porque, ao escapar à instrumentalidade que a punha à disposição de um ‘uso’, a técnica, ela própria, coloca-se fora de todo e qualquer controlo, pondo desse modo em causa a possibilidade de uma decisão ou resposta ainda humanista. Colocado que está entre a garantia de salvação e o perigo da catástrofe, ao homem será, por certo, mais indicado e urgente partir da pior das hipóteses, a da catástrofe, no exercício de um pensamento e de uma acção que serão prudenciais precisamente por isso: por se operacionalizarem mesmo na ausência de uma formulação última e definitiva da verdadeira essência da técnica.

O que permanece ainda demasiado obscuro é a particular relação que o homem com ela estabelece através dos tempos e, em especial, no seio da cultura contemporânea, onde a técnica moderna parece desafiar para um constante questionamento ético e social. Aceitar este desafio implica, porém, responder a uma primeira questão: como foi possível chegar a este predomínio da técnica na cultura actual?

A substituição da força orgânica

Arnold Gehlen explica o crescente sucesso da técnica a partir da substituição da força orgânica pela anorgânica, o que teria vindo a alargar o seu campo de intervenção, autonomia e potencial de desenvolvimento. Lembra, por exemplo, que foi com a máquina a vapor e o motor de combustão alimentados pelas reservas de carvão armazenadas debaixo do solo, que a humanidade se tornou, finalmente, independente das fontes naturais de energia que crescem em ritmo anual. Até aí, ou seja, “enquanto a madeira era o principal material e o trabalho do animal domesticado a fonte mais importante de energia, havia uma limitação para o ritmo e crescimento da cultura material que, não sendo técnica, dependia do lento crescimento e do escasso escopo da reprodução orgânica” [12]. A partir do momento, porém, em que se tornou possível construir obras de engenharia hidráulica destinadas à produção de energia eléctrica e também com a descoberta do aproveitamento da energia atómica, deu-se o último passo “para a emancipação dos substractos orgânicos necessários à obtenção de energia” [13].

O facto da passagem da substituição do orgão para a total substituição do orgânico ser determinada “por uma legalidade espiritual um tanto misteriosa” [14], levou Gehlen a interrogar-se sobre o verdadeiro fundamento dessa substituição do orgânico por materiais e forças anorgânicas, a qual continua, aliás, a estar na base do desenvolvimento da técnica. Tal fundamento residirá no facto do domínio da natureza anorgânica ser muito mais acessível a um conhecimento metódico, racional e estritamente analítico, logo, também mais susceptível de prática experimental. O mesmo já não se pode dizer do domínio biológico e do domínio anímico que são incomparavelmente mais irracionais. Daí a tendência para os técnicos e os cientistas conceberem o mundo numa base positivista fáctica, pois as ciências e as técnicas de maior sucesso exercem uma certa irradiação sobre a nossa visão do mundo e, naturalmente, influenciam-na. É no entanto de assinalar, diz Gehlen, que este tipo de concepção do mundo só se tenha divulgado depois do séc. XVII, quando, como se sabe, já há meio milhão de anos que existe uma produção técnica. [cont.]
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[12] Gehlen, A., (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 18
[13]
idem
[14] ibidem, pp. 18-19


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 17-19

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02 agosto 2008

O homem.com medo de si próprio (5)

Aos potenciais perigos da técnica, devidos à margem de imprevisibilidade que a acompanha, aos erros e às más decisões, há que juntar, portanto, este perigo maior traduzido agora pela possibilidade da própria técnica se vir a apropriar do centro de decisão. Será este último perigo completamente utópico num tempo em que a clonagem e os cyborgs já estão na ordem do dia? Ainda que não se acolha, por ora, a ideia de que a técnica escapa a qualquer determinação antropológica, uma coisa é certa: essa possibilidade mantém-se de pé. Por um lado, porque ainda não foi inequivocamente negada, por outro, porque os progressos já conseguidos em áreas como a engenharia genética e a nanotecnologia, passando pelos implantes, transplantes e outras intervenções de carácter acentuadamente protésico, são hoje potenciadores da futura reconfiguração de um humano cada vez mais tecnológico. Tudo dependerá, assim, de se vir ou não a ultrapassar aquela situação-limite a partir da qual o homem passaria de dominador a dominado, feito escravo da técnica que ele próprio concebeu.

Heidegger, como se sabe, não se afasta muito, ou mesmo nada, deste catastrófico cenário, ao catalogar como importante manifestação da técnica o “carácter irresistível do seu domínio ilimitado” [9] . Tal equivale a reconhecer na técnica uma exigência cujo cumprimento o homem não pode impedir e ainda menos pode ver e dominar. Nestes termos, os gritos de alarme que frequentemente são lançados no sentido de que o percurso da técnica deve ser dominado, são vistos por Heidegger não só como testemunho da apreensão que se espalha mas também como fruto da total ignorância dessa incontornável exigência da técnica. E se, entretanto, tais gritos de alarme se calam, isso não quererá dizer “que o homem controla a técnica. O silêncio traduz muito mais o facto de que face à reivindicação do poder pela técnica o homem se vê reduzido à perplexidade e à impotência, quer dizer, à necessidade de se conformar, pura e simplesmente – explícita ou implicitamente -, ao carácter irresistível da dominação tecnológica” [10].

Em crise fica, portanto, a concepção antropológica-instrumentalista da técnica onde esta surge tanto como coisa humana (inventada, dirigida e estabelecida pelo homem e para o homem), como instrumento (aparelho, utensílio ou meio que o homem manipula em função da sua utilidade). Porque embora nos proporcione ainda uma adequada visão de conjunto do desenvolvimento histórico da técnica, já não nos permite, contudo, perceber o carácter singular de que a técnica se reveste na actualidade, muito menos concorre para o seu desvelamento ou desocultação
. [cont.]

__________
[9] Heidegger, M., (1995), LÍNGUA DE TRADIÇÃO E LÍNGUA TÉCNICA, Lisboa: Vega, p. 27
[10] ibidem, p. 28


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 16-17

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23 julho 2008

O homem.com medo de si próprio (4)

Será também essa a via que irei seguir aqui, onde toda a referência à técnica deve ser entendida como apontando para “a disposição cientificamente racionalizada sobre processos objectivados (...) [onde] a investigação e a técnica se encontram com a economia e a administração e são por elas retro-alimentadas” [4]. É sobre esta técnica que urge reflectir, para conhecer o seu grau de perigosidade ou de infracção ética e, se preciso for, fixar-lhe imperativos limites. O que abre, desde logo, para a primeira das interrogações: de que modo está o pensamento técnico a transformar o ser humano?

O irresistível domínio da técnica


Que a técnica é tão antiga como a humanidade já ninguém duvida, pois é justamente pelos vestígios da utilização de instrumentos de trabalho que se pode concluir se certos achados arqueológicos se relacionam ou não com o homem. Não obstante, a sua essência permanece algo misteriosa ou pelo menos, nunca completamente desvelada e estabelecida. Uma boa introdução ao problema pode perfeitamente passar pela distinção que Francis Ponge faz entre aparelho e utensílio: “O aparelho é um instrumento que serve para as artes mecânicas. O utensílio é toda a espécie de pequeno móvel que serve para a casa, e principalmente, para a cozinha”
[5]. A diferença fundamental será que, como bem assinala Bragança de Miranda, “o primeiro dispensa o humano e o segundo relaciona-se com este através de ‘uma perfeita conveniência com o carácter do objecto’. Daí que se possa segurar na mão, sem pesar de mais. Os outros dispensam a mão e o gesto, se não o substituem radicalmente. (...) Deveríamos dizer que há cada vez mais máquinas e menos utensílios? É preciso ir mais longe, e verificar que mesmo as máquinas estão a desaparecer à medida que os automatismos de repetição se vão instalando um pouco por todo o lado” [6]. Ou seja, enquanto os utensílios (e o seu uso) se mantêm sempre na mais estrita dependência da vontade humana, o mesmo já não sucederá com os aparelhos ou máquinas e posteriores mecanismos de repetição automática que gradualmente se autonomizam e assim põem em cheque o domínio que o homem sobre eles gostaria de continuar a exercer ou, o que é pior, pode estar erroneamente convencido de que ainda exerce.

Uma outra maneira, aliás deveras ilustrativa, de figurar a questão da essência, leva-nos à parábola do aprendiz de feiticeiro por Bragança de Miranda assim invocada:

“um feiticeiro tinha um aprendiz, que casualmente ouviu o mestre usar as palavras mágicas para pôr as coisas a funcionar, tendo-as decorado. Um dia, o mestre teve de sair e deu-lhe ordem para cortar a madeira, varrer a casa, tirar água do poço com um balde, afirmando querer o trabalho pronto quando viesse. O aprendiz, que tinha aprendido a frase mágica para pôr as coisas a funcionar, disse a palavra certa e a vassoura toca de varrer, o machado de partir a lenha e o balde de ir buscar água ao poço. Ora, sucede que, depois de partida a madeira, o machado continua a partir tudo, a vassoura começa a destruir tudo e o balde continua a trazer água sem parar para dentro de casa. Em suma, a própria casa que abrigava mestre e aprendiz começa a ser destruída. O pobre do aprendiz fica numa aflição imensa, sem saber o que fazer, pois não conhecia a palavra mágica para tudo fazer parar. No cúmulo do seu desespero, eis que surge o mestre que diz a palavra necessária, retornando tudo à ordem”
[7].

Ora o que Bragança de Miranda põe em causa é precisamente este final feliz da parábola que não estará assegurado (ainda?) na técnica contemporânea, nomeadamente, porque, relativamente a esta última, não dispomos de um “mestre” análogo ao dessa parábola que nos dê a mesma garantia de controlo do respectivo processo técnico. A parábola corresponde por isso a uma visão da técnica como “algo que foi produzido pelo homem e que se afastou dele, mais ainda, que se voltou contra ele”
[8] mas que pressupõe a sua possibilidade racional de, em última instância, corrigir a direcção do desenvolvimento técnico, recolocando-o ao serviço dos seus interesses ou meros caprichos. E é justamente aqui que a parábola nos abandona (ou melhor, que deve ser abandonada) por nos remeter para uma desordem apenas transitória e seguida do tal final feliz que de modo algum está assegurado na realidade. Pelo contrário, é a crença no controlo humano da técnica que se vai desvanecendo, ou que, pelo menos, sai muito ameaçada, não apenas pela desrazão com que a técnica tem sido usada nas mais bárbaras agressões do homem contra o homem e contra o planeta, como também pelo seu cada vez maior e mais sofisticado grau de autónoma manifestação. [cont.]
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[4] Habermas, J., (1997), TÉCNICA E CIÊNCIA COMO “IDEOLOGIA”, Lisboa: Edições 70, p. 101
[5] cit. in Miranda, J. B., (1999), “Fim da Mediação” in Miranda, J. B. (org), (1999), REAL VS. VIRTUAL, Lisboa: Edição Cosmos, p. 293
[6] Miranda, J. B. (1999), “Fim da Mediação”, op. cit, idem
[7] Miranda, J.B., (2002), TEORIA DA CULTURA, Lisboa: Edições Século XXI, pp. 37-38
[8] idem

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 15-16

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12 julho 2008

O homem.com medo de si próprio (3)

Foi preciso esperar pela ciência grega (episteme), cujo saber teórico-abstracto e especulativo se distanciava da utilidade prática e imediata da técnica, para se poder falar, aí sim, de uma notória diferença entre técnica e ciência. A primeira, normalmente apoiada numa tradição de saber muito virado para a acção, para a utilidade; a segunda, feita de pensar filosófico, logo, mais orientada para a verdade ou para a contemplativa compreensão do real. Nesse tempo, eram estes os principais traços distintivos entre técnica e ciência. E assim se mantiveram praticamente até ao Renascimento.

Com os modernos, a ciência passou a ser encarada, basicamente, como instrumento de transformação da natureza, perdendo o carácter abstracto e especulativo da ciência grega. Esta, que sempre se mantivera afastada dos aspectos empíricos e práticos ligados à esfera da produção económica, foi progressivamente substituída pela ciência moderna. O processo consistiu, por assim dizer, na fusão das duas tradições pré-existentes: “a tradição artesanal e a tradição intelectual. Isto é, a tradição dos que fazem (artesãos, engenheiros), adquirindo por isso um certo conhecimento empírico, e a tradição dos que pensam (intelectuais, religiosos), produzindo especulação pura sobre a natureza das coisas, cosmologias quase sempre justificativas da ordem natural e social, e preservando os textos do saber escolástico”
[2] . O resultado foi uma cada vez mais virtuosa combinação entre ciência e técnica, que veio a transformar todo o tecido económico e as próprias estruturas sociais de relação e poder. A partir daí, técnica e ciência não mais se separaram, pelo menos com a mesma nitidez do passado. O desenvolvimento do conhecimento científico passa a depender dos avanços técnicos que, entre outras coisas, tornam possíveis as experimentações repetidas, enquanto que os instrumentos e as respectivas operações técnicas, anteriormente confinados à intuição, ao costume e à tradição de saberes locais, passam igualmente a beneficiar dos conhecimentos que são sistematicamente adquiridos pela via científica, e portanto, de validade universal.

É neste regime de unidade ou interdependência entre a técnica e a ciência que se pode situar o aparecimento do próprio termo tecnologia para designar uma “teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da actividade humana (por ex., indústria, ciência, etc.)”
[3] - no que se aproxima do conceito de ciência. Curiosamente, porém, tecnologia pode significar, igualmente, tanto o conjunto de técnicas de um domínio particular, como qualquer técnica moderna e complexa, ou uma técnica avançada de última geração – com isto se confundindo, afinal, com a própria técnica, na sua acepção mais tradicional.Confirma-se, portanto, que não há hoje em dia uma delimitação muito precisa entre técnica, ciência e tecnologia, quer do ponto de vista semântico, quer ao nível das respectivas práticas técnico-científicas. E, se tal acontece, é seguramente porque têm muito em comum. Desde logo, quanto à sua finalidade, já que qualquer delas se orienta para um resultado útil, aqui entendido naquele sentido muito amplo que vai da melhoria das condições de vida humana às novas invenções ou descobertas, passando pelo aumento do poder de controlo e domínio sobre a natureza e, mais recentemente, sobre a própria evolução da espécie. Depois, porque nenhum desses três domínios - técnico, científico e tecnológico - se afirma, hoje, isoladamente, sem recorrer aos demais. É assim com a ciência, que precisa de instrumentos, aparelhos e procedimentos técnicos para se operacionalizar. É assim com a tecnologia, que se apoia na teoria e no estudo sistemático das respectivas técnicas para potenciar novas descobertas. É assim com a própria técnica que, longe da arcaica habilidade ou destreza manual em que originariamente se fundava, é agora, ela própria, um sofisticado produto da actividade científica com a qual, de resto, interage. Não surpreende então que, no âmbito de uma filosofia crítica da cultura, quando se fale simplesmente de técnica ou de escalada da técnica se queira, com isso, prefigurar os prodigiosos avanços técnico-científicos do nosso tempo. [cont.]
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[2] Deus, J. D., (2003), DA CRÍTICA DA CIÊNCIA À NEGAÇÃO DA CIÊNCIA, Lisboa: Gradiva, p. 23

[3] DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, p. 3474

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 13-15

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04 julho 2008

O homem.com medo de si próprio (2)



O HOMEM E A TÉCNICA

Técnica, Ciência e Tecnologia

Quando se pretende analisar a repercussão ética da actual era tecnológica é quase impossível fugir a uma panóplia de termos ou conceitos que mantêm grande afinidade entre si: técnica, ciência, tecnologia, ciência aplicada, tecnociência, progresso técnico-científico, engenharia genética, robótica, nanotecnologia [1] e muitos outros. Isto acontece, sobretudo, porque cada um destes termos corresponde a uma certa perspectiva de intervenção humana sobre a natureza. Mas para o que aqui mais importa não é preciso apurar o significado último de todas ou de cada uma dessas expressões. Bastará conceder primazia analítica aos três primeiros conceitos acima indicados - Técnica, Ciência e Tecnologia - que, automaticamente, remetem para as principais instâncias do mundo técnico-científico, mesmo do mais especializado, sobre cujos limites éticos importa reflectir.


Refiro-me a instâncias do mundo técnico-científico, pela simples razão de que não existem hoje fronteiras muito nítidas entre técnica, ciência e tecnologia. Tão intimamente conexionados nos surgem estes três domínios do conhecimento que, por vezes, torna-se difícil perceber o que seria imputável a cada um deles. Aliás, em alguns casos nem sequer nos interrogaremos se estamos perante uma ciência, uma técnica ou uma tecnologia, como sucede, regra geral, com a medicina, com a economia, com a gestão ou até com a própria informática. Isto,
claro, na actualidade. Mas a técnica, tradicionalmente associada a um saber prático aplicável à vida concreta de todos os dias, ou se quisermos, a um “saber-fazer”, detém, como se sabe, considerável anterioridade histórica sobre a reflexividade teorética da ciência, pelo que, de início, nem se colocaria o problema da sua diferença ou distinção. [cont.]
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[1] Como se depreende do seu prefixo “nano”, que corresponde a um milésimo milionésimo da unidade (0,000 000 001), a nanotecnologia é a “ciência do pequeno” (do muito pequeno, mesmo). Segundo Cylon Gonçalves da Silva, físico brasileiro ligado à criação do Centro Nacional de Referência em Nanotecnologia, não se trata realmente de uma tecnologia específica mas de um “conjunto de técnicas, baseadas na Física, na Química, na Biologia, na Ciência e Engenharia de Materiais e na Computação, que visam estender a capacidade humana para manipular a matéria até aos limites do átomo”. Foi em 1959 que Richard Feynman, físico norte-americano e Prémio Nobel, lançou, pela primeira vez, a ideia da nanotecnologia, no decorrer do encontro anual da Sociedade Americana da Física. Proferindo uma palestra subordinada ao título “Há muito espaço lá em baixo” causou a estupefacção geral ao atirar para o ar a seguinte questão: “Por que não podemos escrever todos os 24 volumes da Encyclopaedia Britannica na cabeça de um alfinete?” Consta que a assistência riu. Mas Feynman, imperturbável, terá continuado: “A cabeça de um alfinete tem uma dimensão linear de 1/16 de polegada. Se a ampliarmos em 25 mil diâmetros, a área da cabeça do alfinete será equivalente às páginas da Encyclopaedia Britannica. Então, tudo o que é preciso fazer é reduzir o tamanho de tudo o que está na enciclopédia 25 mil vezes”. A ideia estava lançada, mas acabou por cair no esquecimento. Somente em 1992 a nanotecnologia viria a afirmar-se definitivamente, graças às propostas que Erick Drexler apresentou perante o Comité do Senado para o Comércio, Ciência e Transporte, Sub-Comité para a Ciência, Tecnologia e Espaço, subordinado ao tema “Nanotecnologia Molecular”. Uma dessas propostas consistia em produzir “objectos a partir de moléculas, manipulando átomos individualmente, como tijolos na construção de uma casa”. Al Gore, que viria a ser Vice-Presidente dos EUA e era, na altura, Presidente do citado Sub-Comité, gostou do que ouviu. Estava garantido o apoio à nanotecnologia por parte da Administração Clinton.
http://www.comciencia.br/reportagens/nanotecnologia/nano10.htm
http://www2.uol.com.br/sciam/nanotecno.html

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 13

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30 junho 2008

O homem.com medo de si próprio (1)



Introdução

Há muito que a tradição foi destronada pelo novo, pelo nunca vivido ou experimentado. De um momento para o outro, são milénios de história que ficam para trás e, reduzido agora à incessante projecção da novidade, o presente quase deixa de existir. Sobrevive, claro, mas já não como verdadeiro presente porque é, cada vez mais, mera versão tecnológica de um futuro antecipado. Já não precisamos, pois, de recorrer a profecias ou à ficção para poder imaginar os perigos que nos esperam se não soubermos controlar o nosso constitutivo fascínio pela técnica dentro de indeclináveis limites éticos.

São perigos que nos espreitam, que acompanham cada invenção humana, cada passo para o mundo de amanhã. São perigos ou riscos que urge definir se vale a pena correr. Importa por isso reanalizar não só a relação que o homem vem mantendo com a técnica como o proeminente lugar de que esta desfruta na sociedade contemporânea, com destaque para a sua (desmesurada?) autonomia decisória. Esta é, como se sabe, uma das preocupações centrais no pensamento de Arnold Gehlen, que aqui seguirei de perto, para quem a ideologia técnica, ao invadir a cultura, passou a modelar a consciência humana em domínios da vida que não se lhe ajustam. Chegou-se assim à situação paradoxal em que o homem se encontra agora, ao ter medo de si próprio, situação que, em última instância, aponta para a necessidade de se submeter o chamado progresso técnico a um mais apertado crivo ético.

Pelo caminho, confrontar-nos-emos com a falência de todas as éticas tradicionais, perante a originalidade e dimensão dos quase ilimitados poderes técnicos de que o homem só muito recentemente passou a dispor. O pensamento ético, que Isaiah Berlin associa à pesquisa de “convicções quanto ao modo como a vida deve ser vivida” é, porém, absolutamente imprescindível à configuração do humano. Não se estranhe, então, que a impossibilidade de confiarmos no critério da tecnociência para decidir sobre projectos humanos, assim como a necessidade de um cada vez maior policiamento do poder técnico e a adopção de um novo imperativo categórico (o de Hans Jonas), surjam como algumas das possíveis respostas às crescentes preocupações pelas intervenções técnicas potencialmente mais perigosas, como são aquelas em que o homem figura como objecto da própria tecnologia que criou.

No final, veremos ainda como as três principais interpretações sócio-filosóficas a que os próprios cientistas vêm submetendo o rumo do actual desenvolvimento técnico conduzem, afinal, a um ponto comum: a urgência de um alargado consenso quanto aos riscos que a humanidade está disposta a correr. Riscos de que todos temos não só legitimidade para prever, mas também a responsabilidade de prevenir.

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in Américo de Sousa (2004), O homem.com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 9-10

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