08 dezembro 2009

O estilo do "homem dos cobertores"

Hoje lembrei-me de um tempo de criança, de quando a minha mãe me levava todos os sábados de manhã ao muito concorrido mercado da Senhora da Hora, na rua da "igreja velha", e eu aproveitava o tempo que ela se demorava nas compras para me aproximar imediatamente do "homem dos cobertores", um propagandista que me deixava completamente hipnotizado. Mas é melhor pintar primeiro o quadro.

Aquilo não era um vendedor, era um artista. Sentado em cima do tejadilho da sua furgoneta ao lado dos vistosos lotes de colchas e cobertores que pretendia impingir - e para os quais não parava de chamar a atenção - fazia do microfone o que queria. Ora gritava como se estivesse a kilómetros, ora sussurrava quase ao ouvido. Se fosse preciso, cantava. Se fosse preciso, ria. Se fosse preciso, chorava. Prendia a atenção de todos, procurava o olhar de cada um. O registo era assertivo mas também sempre muito amigável, cuidadoso, educado. Tinha o seu ethos sob rigoroso controlo. Representava como se estivesse num palco. E estava. No palco da sua vida.

Para compor o "espectáculo", recorria a um sem número de técnicas. Uma delas consistia em justificar o baixo preço dos seus artigos dizendo (em voz baixa) que os comprara a uma fábrica da Covilhã que tinha ardido. Não faço hoje a menor ideia de quantas vezes terá ardido essa fábrica que, por certo, nunca existiu.


Outra técnica, de grande efeito, consistia em dar antes de receber. E esse era o momento por que todos esperavam: os que não lhe queriam comprar nada (muitos) e os que admitiam comprar algo (poucos). Indiferente ao risco, sujeitando-se a dar tudo em troca de nada, o nosso "homem dos cobertores" iniciava a distribuição por todos de variados artigos, dos sabonetes aos pentes, das tesouras aos bordados, dos lenços às tolhas de mesa, etc., etc. E por mais estranho que pareça, pelo menos de todas as vezes a que assisti ao seu show, conseguiu sempre "despachar" o artigo todo. Escapa-me agora, porventura, a que última técnica terá recorrido para atingir o seu grande objectivo - vender os cobertores.

A única coisa que recordo, desse momento conclusivo, é que ele começava por pegar num só cobertor, depois noutro, depois noutro ainda, mais um e mais outro e ia acompanhando cada gesto com aquele estafado palavreado que pelos vistos continua a resultar: "não leva um, não leva dois e nem leva três, vai levar quatro cobertores pelo preço de um".

Foi este fabuloso propagandista que me veio à cabeça quando escutei hoje no noticiário das 14 h da TSF, o nosso Primeiro-Ministro a anunciar a futura rede de abastecimento de carros eléctricos nestes precisos termos:

"Portugal deseja ser o único país no mundo, muito em breve, a ter o uma rede local de abastecimento e ou de carregamento, não uma rede numa cidade, mas uma rede verdadeiramente nacional que abranja todo o território nacional"

Será que o "homem dos cobertores" já antecipava o estilo?