ACONTECE: a "ingrata" gratidão
Ao sabor da minha própria errância pela blogosfera, deparo com quatro referências ao fim do programa "ACONTECE" (que, parece, afinal, não ter deixado ninguém indiferente). Duas são arrasadoras: as do Alexandre, do Desejo Casar e do Alberto Gonçalves. As outras duas, mostram-se mais caridosas: as do Pacheco Pereira e do Francisco José Viegas. As primeiras são muito directas, nelas se podendo ler que a «cultura» que o «Acontece» encontrou e fomentou é a cultura dos pasmados, donos de uma visão acrítica e reverente (Alberto Gonçalves) e "Já quase ninguém via o programa" (Alexandre, do Desejo Casar). Duas opiniões críticas muito cáusticas que Carlos Pinto Coelho não terá, por certo, qualquer dificuldade em interpretar. Mas sucederá o mesmo com as outras duas? Vejamos:
No Abrupto, escreve JPP: "O Acontece retratava bem o carácter almofadado e reverente da nossa cultura oficial, cheia de lutas surdas de turf e de salamaleques, vivendo das partilhas de vã glória e dos subsídios, onde todos os livros são bons e ninguém é mau poeta, mau romancista ou mau coisa nenhuma. Mas eu tenho razões seguras para reconhecer em Carlos Pinto Coelho um mérito de fair play"
Por sua vez, no Aviz, refere FJV: "Mas o «Acontece» não seria, nunca, o meu programa, nem vale a pena explicar isso agora. O Carlos P. C., como JPP reconheceu, é uma pessoa com fair play"
Aparentemente, há em JPP e FJV a preocupação adicional de contrapôr o lado humano (positivo) do autor à apreciação do programa (que se mantém negativa). Essa preocupação surge, porém, expressa de uma forma que ilustra com a maior nitidez o carácter problematizante da linguagem e, mais especificamente, a sempre possível divergência entre o que se quer dizer e o que fica dito.
Notemos que, num e noutro, é a existência de um mas que vem dar o sentido último ao respectivo enunciado. Um "mas" tão determinante como na Antífrase - figura retórica que consiste em dizer o contrário do que se pretende dizer (Ex: eu posso ser um idiota, mas....) - embora de sentido inverso, pois aqui, de facto, não foi o contrário que JPP e FJV quiseram dizer. Foi o contrário que ficou dito. Porque, em termos práticos, tudo se passa como se realmente tivessem afirmado: "ele é uma pessoa encantadora mas faz um programa que não presta".
Abundam os testemunhos de que Pacheco Pereira e Francisco José Viegas são duas pessoas gratas. Nenhuma dúvida substirá também, sobre a consideração que Carlos Pinto Coelho lhes merece. Mas podem, neste caso, ter sido traídos pelo evidente registo de tolerância que costumam manter até nos seus mais veementes comentários críticos. O ponto é que duvido que Carlos Pinto Coelho (ou outro qualquer) pudesse ter apreciado estes dois testemunhos públicos.
Se JPP apenas pretendia "reconhecer em Carlos Pinto Coelho um mérito de fair play tão raro em Portugal, tão ausente dos nossos costumes culturais, tão pessoalmente estimável, que seria uma enorme injustiça não o dizer em público" poderia também ter dito isso e apenas isso. Sem qualquer outra consideração negativa que ficasse, como ficou, a ensombrar o elogio, a retirar-lhe força. É que, como se sabe, não é possível desfazer inteiramente a ligação da pessoa aos seus actos e vice versa. Logo, o momento em que se elogia o mérito de alguém, é a altura ideal para salientar as virtudes e não para lhe apontar os defeitos.
O mesmo vale para FJV. Ao declarar "Estou grato por isso, e falo dessa gratidão publicamente" seria de esperar que, quando muito, indicasse as razões dessa sua gratidão, como aliás, fez. E não, que, à semelhança do que fez JPP, aproveitasse o post para, ao mesmo tempo, vincar a sua "distância" relativamente à qualidade ou razão de ser do "Acontece". Admito, por isso que, perante tão "ingrata" gratidão, Carlos Pinto Coelho já tenha cedido ao popular desabafo: "com amigos destes..."
Enfim. Partidas que a linguagem nos prega todos os dias mas que nos alertam para um dos mais prementes problemas de comunicação: a diferença (ou desvio) entre o pensamento e a sua expressão.
No Abrupto, escreve JPP: "O Acontece retratava bem o carácter almofadado e reverente da nossa cultura oficial, cheia de lutas surdas de turf e de salamaleques, vivendo das partilhas de vã glória e dos subsídios, onde todos os livros são bons e ninguém é mau poeta, mau romancista ou mau coisa nenhuma. Mas eu tenho razões seguras para reconhecer em Carlos Pinto Coelho um mérito de fair play"
Por sua vez, no Aviz, refere FJV: "Mas o «Acontece» não seria, nunca, o meu programa, nem vale a pena explicar isso agora. O Carlos P. C., como JPP reconheceu, é uma pessoa com fair play"
Aparentemente, há em JPP e FJV a preocupação adicional de contrapôr o lado humano (positivo) do autor à apreciação do programa (que se mantém negativa). Essa preocupação surge, porém, expressa de uma forma que ilustra com a maior nitidez o carácter problematizante da linguagem e, mais especificamente, a sempre possível divergência entre o que se quer dizer e o que fica dito.
Notemos que, num e noutro, é a existência de um mas que vem dar o sentido último ao respectivo enunciado. Um "mas" tão determinante como na Antífrase - figura retórica que consiste em dizer o contrário do que se pretende dizer (Ex: eu posso ser um idiota, mas....) - embora de sentido inverso, pois aqui, de facto, não foi o contrário que JPP e FJV quiseram dizer. Foi o contrário que ficou dito. Porque, em termos práticos, tudo se passa como se realmente tivessem afirmado: "ele é uma pessoa encantadora mas faz um programa que não presta".
Abundam os testemunhos de que Pacheco Pereira e Francisco José Viegas são duas pessoas gratas. Nenhuma dúvida substirá também, sobre a consideração que Carlos Pinto Coelho lhes merece. Mas podem, neste caso, ter sido traídos pelo evidente registo de tolerância que costumam manter até nos seus mais veementes comentários críticos. O ponto é que duvido que Carlos Pinto Coelho (ou outro qualquer) pudesse ter apreciado estes dois testemunhos públicos.
Se JPP apenas pretendia "reconhecer em Carlos Pinto Coelho um mérito de fair play tão raro em Portugal, tão ausente dos nossos costumes culturais, tão pessoalmente estimável, que seria uma enorme injustiça não o dizer em público" poderia também ter dito isso e apenas isso. Sem qualquer outra consideração negativa que ficasse, como ficou, a ensombrar o elogio, a retirar-lhe força. É que, como se sabe, não é possível desfazer inteiramente a ligação da pessoa aos seus actos e vice versa. Logo, o momento em que se elogia o mérito de alguém, é a altura ideal para salientar as virtudes e não para lhe apontar os defeitos.
O mesmo vale para FJV. Ao declarar "Estou grato por isso, e falo dessa gratidão publicamente" seria de esperar que, quando muito, indicasse as razões dessa sua gratidão, como aliás, fez. E não, que, à semelhança do que fez JPP, aproveitasse o post para, ao mesmo tempo, vincar a sua "distância" relativamente à qualidade ou razão de ser do "Acontece". Admito, por isso que, perante tão "ingrata" gratidão, Carlos Pinto Coelho já tenha cedido ao popular desabafo: "com amigos destes..."
Enfim. Partidas que a linguagem nos prega todos os dias mas que nos alertam para um dos mais prementes problemas de comunicação: a diferença (ou desvio) entre o pensamento e a sua expressão.
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