29 julho 2004

Excertos de um livro não anunciado (194)

(...) Ao contrário das ligações de sucessão que unem elementos da mesma natureza, com base num vínculo de causalidade, as ligações de coexistência estabelecem um vínculo entre realidades de nível desigual, em que uma é apresentada como expressão ou manifestação da outra. Estão neste caso as relações entre a pessoa e os seus actos, os seus juízos ou as suas obras. Com efeito, tudo o que se diz sobre uma pessoa, diz-se em função das suas manifestações e tem por base a unidade e a estabilidade observáveis no conjunto dos seus actos. Presumimos essa estabilidade quando interpretamos o acto em função da pessoa. Se alguém age no desrespeito dessa estabilidade, acusamo-la de incoerência ou de mudança injustificada. É o carácter de uma pessoa que confere sentido e delimita o alcance do seu comportamento, mas são também as sua manifestações que nos permitem formar uma ideia sobre qual seja o seu carácter. Donde se pode concluir que a ideia que se faz da pessoa e a maneira de compreender os seus actos estão em constante interacção. É certo que, como refere Perelman, não se pode encarar a pessoa apenas no quadro da sua estabilidade, pois a sua liberdade e espontaneidade estão sempre associadas à possibilidade de mudança e adaptação, quer por iniciativa própria, quer por imposição do real. Reconhecer-se-á por isso a natureza ambígua das ligações de coexistência que se estabelecem entre as pessoas e os actos que praticam. Mas dado que só se conhecem as pessoas através das suas manifestações, são os actos que influenciam, sem dúvida, a nossa concepção sobre esta ou aquela pessoa. Uma concepção que, no entanto, mantém sempre uma certa relatividade, pois como salienta Perelman, “todo o acto é considerado menos como índice de uma natureza invariável do que como uma contribuição para a construção da pessoa que apenas termina com a sua morte” * (...)

* Perelman, C.(1993), O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p. 107