23 setembro 2004

Que unanimismo?

Segundo reza a sua crónica no Público de hoje, Pacheco Pereira pensa que o debate que se trava no PS o reforça e que o unanimismo no PSD o enfraquece, mas a sensação que fica é a de que faz uma breve referência ao primeiro com a única e deliberada intenção de se "atirar" ao segundo. O recurso retórico a que deita mão é claramente o da comparação, com o debate do PS a surgir, por assim dizer, como "modelo", ou, pelo menos, como exemplo do que também deveria acontecer no PSD.

O problema é que esta estratégia argumentativa da comparação só resulta suficientemente persuasiva quando a realidade escolhida para termo de comparação for manifestamente evidente, o que não acontece com o referido "debate do PS". É, de resto, o próprio Pacheco Pereira quem o admite, desde logo, quando escreve "não sendo o debate no PS muito interessante do ponto de vista político-ideológico". Ora se não é muito interessante do ponto de vista político-ideológico, como pode ser uma boa referência para o PSD ou para qualquer outro partido?

Não sei de que "unanimismo esmagador" ou "anomia partidária" fala Pacheco Pereira, mas quem desconhece que dois dos seus mais destacados militantes, Marcelo Rebelo de Sousa, e ele próprio, não perdem uma ocasião para criticar publicamente o governo e as mais altas chefias do seu próprio partido? Evidentemente que não se põe em causa a democrática liberdade de expressão e de exercício crítico. Mas isso também não significa, ou creio que não pode significar, que um cidadão responsável saia à rua todas as semanas, ou todos os dias, para dizer mal da liderança do seu partido ou "para deitar abaixo" o governo que o seu partido maioritariamente integra. E, salvas as devidas proporções, é mais ou menos isso que tem sido levado a cabo pelos dois distintos comentadores.

Certo ou errado? Tenho as minhas dúvidas. Por um lado, o partido (conjunturalmente, no governo) só tem a ganhar com o rigoroso escrutínio e a participação crítica dos seus militantes. Por outro, não parece nada desprezível o descrédito ou desgaste de imagem que se segue a cada reprimenda pública dos seus próprios militantes, por vezes, com uma frontalidade e exigência política de fazer inveja à melhor Oposição.

Mas sabendo-se como são decisivas as expectativas dos agentes no sucesso ou insucesso de qualquer governação, surge um primeiro problema que é o de saber até que ponto se justifica que um comentador político continue como militante no activo de um partido. Que solidariedade política pode o partido esperar dele? Que isenção partidária lhe pode ser reconhecida como comentador? Não se arrisca o "comentador-militante" a ser "preso por ter cão e por não ter"?

Segundo problema: o princípio de igualdade entre os militantes. Se os militantes- comentadores "dizem mal do partido em público" sem qualquer advertência do partido, todos os militantes terão o mesmo direito (sob pena de existirem militantes de primeira e militantes de segunda). Ocorre perguntar: que partido político seria possível formar e manter onde todos os militantes desatassem a criticar o próprio partido como o fazem habitualmente Pacheco Pereira e Marcelo Rebelo de Sousa (mas não só estes)?

Parece então que Pacheco Pereira terá, desta vez, escolhido mal o termo de comparação já que se há um partido onde não vem reinando o unanimismo é o PSD. Aliás, face ao que se tem visto, poderia mesmo dizer-se que enquanto Pacheco Pereira e Marcelo Rebelo de Sousa forem militantes do PSD nunca este será um partido unanimista. A evidente discordância de Manuela Ferreira Leite e Teresa Patrício Gouveia quanto ao modo como se processou (também no PSD) a escolha do actual governo, as eternas divergências entre Rui Rio e Luis Filipe de Menezes ou o desentendimento entre membros do PSD no executivo camarário do Porto são apenas mais alguns exemplos de falta da alegada unanimidade no PSD. Mas muitas mais haverá, que nem sempre chegam à rua ou aos jornais. Como é natural e, em muitas ocasiões, até desejável. Se tenho um reparo a fazer a um colega da minha equipa, procuro-o e digo-lhe o que tenho a dizer-lhe, em privado. Só em última ratio o tornaria público. E isto, em nome das regras mínimas de tolerância e cortesia que devem imperar nas relações entre pessoas. As mesmas pessoas, por cujas necessidades, anseios e sentimentos os políticos se devem bater.

Mas o mais curioso é que a haver algum receio de que o "unanimismo" de que fala Pacheco Pereira se viesse a instalar em algum dos dois grandes partidos portugueses, seria até mais provável que tal viesse a acontecer no seio do PS, pois como se pode ler no mesmo Público de hoje (p. 14), José Sòcrates, em entrevista ao programa da RR, "Diga lá Excelência" já fez o seu primeiro aviso à navegação: "O debate que está a haver no PS é positivo, mas, uma vez eleito o novo líder, é preciso unir o partido". E o título da entrevista não deixa margem para dúvidas: "José Sócrates manda calar adversários depois do congresso". O que quer dizer, afinal, que o debate em curso no PS visa unicamente escolher o responsável máximo pelo partido e que o candidato já dado pelas sondagens como folgado vencedor não vai querer mais "conversa" depois da sua eleição. Ora, ora... e foi este termo de comparação que Pacheco Pereira foi buscar? Mas como poderia o PSD estar com um idêntico debate sobre eleições partidárias se, mal ou bem, já tem o seu líder escolhido?