02 março 2005

Por exemplo no futebol

Ao princípio da noite, de regresso a casa, a certa altura escuto na rádio: "confesso que não consigo ser isento quando joga o meu clube". Logo percebi que se tratava de mais uma edição do programa Bancada Central, de Fernando Correia, na TSF.

Era um ouvinte, apaixonado por futebol, perdão, apaixonado pelo seu clube (porque cada vez mais o futebol parece ser apenas um pretexto para chegar aos estados de alma da clubite), insurgindo-se contra o senhor Jorge Coroado (ex-árbitro de futebol) que terá dito na televisão que foi falta (não percebi contra quem), vindo no dia seguinte a negá-la, num jornal (ou vice versa, também já nem sei nem interessa). Só sei que o exaltado ouvinte repetia com veemência: "ele que se assuma como benfiquista que é... qual é o problema? Ele que se assuma como benfiquista em vez de se armar em isento. Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto."

Nessa altura, senti que "desliguei". O ouvinte continuava a falar, cada vez com mais exaltação ou entusiamo, mas eu já não o ouvia pois ficara apenas a repetir de mim para mim as palavras que ele usara para exprimir uma tão resignada confissão: "Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto"..."Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto"..."Eu também não consigo ser isento quando joga o meu clube, não consigo, pronto"...

É que se há coisa que realmente me impressiona é este tom de fatalismo da falta de isenção seja no que for, por exemplo, no futebol. Mas também na política, nos negócios e na conversação em geral. Quando penso em alguém que se conforma com a sua própria falta de isenção tenho dificuldade em evitar um pré-juízo de desvalor. Claro que é muito difícil ser isento. Claro que, provavelmente, nenhum de nós é tão isento como pensa ser. Claro que a falta de isenção espreita cada uma das nossas preferências, interesses ou meros desejos. Não podemos, por isso, idealizar excessivamente a isenção. Como a verdade, ela é também uma meta, uma referência da qual nos procuramos aproximar o mais possível. Apenas isso, mas seguramente isso, no mínimo.

Tenho muitas dúvidas sobre as virtudes da paixão bruta. Minto. Tenho poucas, muito poucas dúvidas mesmo. Posso até afirmar que não conheço nenhum desfecho feliz de uma paixão bruta, incontrolada, daquele tipo de paixões que deixam a pessoa "fora de si". E só uma descontrolada paixão leva a que alguém não consiga (ou desista de) ser isento (outra coisa é o nao querer sê-lo).


Mas é natural que uma pessoa se apaixone a tal ponto que, em certas situações, deixe de ser isenta. O que já não parece aceitável é que se transforme a momentânea impossibilidade de atingir determinado objectivo específico (isenção) numa constitucional incapacidade (de ser isento). O que não é de admitir é que se valorize a recreativa paixão clubista acima de um ético esforço de isenção. Porque a falta de isenção é sempre uma falta desta última, que devendo lá estar e não estando, se traduz no desrespeito pelo outro. Logo, nem a paixão serve de desculpa para não ser isento, nem a falta de isenção e a cegueira analítica funcionam como atestado de amor clubista. Aliás, como poderia um adepto afirmar a superioridade do seu clube, começando, logo à partida, por confessar que não consegue ser isento?