02 maio 2005

Matemática & Influência

Como o tempo passa. Já lá vão quase dois anos e, contudo, só hoje li. Segundo Nuno Ramos de Almeida, do Muro Sem Vergonha (post “SALTITÃO DOS QUANTA”), durante um debate que teve lugar em Agosto de 2003, na Aula Magna, o Professor Nuno Crato terá feito a seguinte afirmação:

"Se o mundo fosse constituído de matemáticos os publicitários não vendiam nada"


Devo dizer que tenho muito apreço pela contribuição que o actual Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática vem dando à divulgação da ciência, nomeadamente, quando em pequenas doses e numa linguagem extremamente acessível promove a aproximação entre o real quotidiano e a sua explicação científica, como é o caso da coluna "Passeio Aleatório" que mantém na revista "Única", do "Expresso".

Não posso, contudo, deixar de considerar que esta sua afirmação de que se o mundo fosse constituído de matemáticos os publicitários não vendiam nada é menos feliz e talvez só explicável à luz de uma empobrecida concepção dos efeitos persuasivos da comunicação em geral e da publicidade em particular. Desde logo, porque está aqui implícito um duplo preconceito: que a publicidade é sempre enganosa e que só consegue persuadir a comprar, a quem não tenha formação lógico-matemática. Preconceito que, reconheça-se, não tem ponta por onde se lhe pegue.

É provável que muitos dos que se deixam influenciar pela publicidade não se sentissem tão atraídos a comprar o produto publicitado, se possuissem uma maior capacidade de distanciamento ou descentração da mensagem publicitária e de tudo o que esta propõe ou sugere. Mas pensar que é a formação matemática que pode tornar o cidadão "imune" aos própositos publicitários, afigura-se-me, para ser franco, rematada ingenuidade. Porque se a lógica e a matemática disciplinam o raciocínio, já nada ou muito pouco podem contra o próprio pensamento, contra os valores, contra as preferências, contra os interesses, contra a vontade, contra a emoção ou até contra a simples curiosidade que em sede de decisão, tantas vezes se sobrepõe, como sabemos, ao puro cálculo racional do custo-benefício.

Acontece que o matemático é um homem da ciência, não um homem científico. É uma pessoa, não mero dispositivo tecnológico. E as pessoas não são constituídas por faculdades completamente separadas. Como sustenta Perelman e Damásio confirma (ver a sua hipótese do marcador somático), não é possível discriminar com rigor, por exemplo, entre razão, emoções e vontade, o que por si só, deita por terra a distinção clássica entre persuasão e convencimento, segundo a qual, teríamos persuasão quando a mensagem fosse dirigida à "vontade" (irracional) e convencimento, sempre que a mesma visasse o "entendimento" (racional).

A comunicação, portanto, incluindo a publicitária, dirige-se mais exactamente ao homem no seu todo e não apenas à sua faculdade lógico-matemática. Daí que, inclusive, em situações muito específicas, o matemático possa até ser mais influenciável pela publicidade do que o comum dos mortais. Mas, já agora, qual é o problema de ser influenciável pela publicidade? Haverá ainda alguma dúvida de que todos somos mais ou menos influenciáveis?

Tenho para mim que o problema não está na nossa maior ou menor susceptibilidade à influência da publicidade ou à influência de qualquer outro tipo mas sim, no modo como lhe reagimos, pois se abdicamos totalmente da nossa consciência crítica, arriscamo-nos a ter um péssimo "despertar" e se alimentamos a ilusão de que nada nem ninguém nos conseguirá influenciar, podemos ser traídos pelo excesso de auto-confiança.

É claro que, como reconhece a psicóloga clínica Michèle Declerck (*) - que há mais de quinze anos mantém uma carreira publicitária a par da sua profissão de psicoterapeuta - o discurso persuasivo da publicidade recorre aos mesmos processos de influência da hipnose. Mas, ao contrário do que poderão fazer crer certos espectáculos de hipnotismo (o deplorável hipnotismo de palco) previamente encenados, quer pela selecção de pessoas com alta susceptibilidade hipnótica, quer pelo recurso a meia dúzia de fingidores, não é o "poder" do hipnotizador que domina o indivíduo a hipnotizar mas, pelo contrário, é o sujeito a hipnotizar que transfere para o hipnotizador o seu "poder" de se abstrair de tudo o que o rodeia e seguir apenas as "ordens" daquele a quem entregou (quase) todos os comandos.

Acresce que essa "transferência de poder" está sempre dependente da prévia decisão do hipnotizado que, de livre vontade, declara pretender ou aceitar submeter-se (é o termo) à hipnose. De onde se poderá dizer que, pelo menos até certa altura da respectiva indução hipnótica, qualquer pessoa pode tomar a iniciativa de parar ou prosseguir. O mesmo sucede com a influência da publicidade onde não é preciso ser matemático para, enquanto é tempo, controlar ou escapar aos seus efeitos menos desejados. Num e noutro caso, não se pode falar de vítimas indefesas de um qualquer processo de influência já que qualquer cidadão de mediana capacidade crítica tem o discernimento suficiente para determinar as suas escolhas. Se é assim na política, onde a persuasão impera de cara encoberta, porque não deveria ser na publicidade onde a persuasão se mostra tal qual é? O que não se vê é em que é que os matemáticos poderiam ser criticamente mais avisados ou mais imunes à persuasão do que os demais cidadãos. Com todo o respeito.

(*) Michèle Declerck, La publicité et l’hypnose, in Didier Michaux (Org), HYPNOSE, LANGAGE ET COMMUNICATION, Paris: Editions Imago, 1998