20 agosto 2005

Excerto de um livro não anunciado (253)

Dir-se-á que neste endossar ao manipulado de uma parte importante da responsabilidade pela manipulação, há o idealismo de quem pressupõe um justo equilíbrio inter-partes (orador-auditório), uma simetria de posições, de poderes, de saberes, de estatutos, numa palavra, uma igualdade à partida entre os que recorrem à palavra para enganar ou seduzir e os que são alvo de um tal abuso, equilíbrio e simetria que, em bom rigor, não se observa nunca numa situação retórica concreta. Mas, de facto, não é disso que se trata. Do que se trata é de não transferir para a retórica os nocivos efeitos das desigualdades psicológicas, culturais, sociais, éticas e políticas, que caracterizam o encontro dos homens nas múltiplas situações de vida comum. Quem pretende fazer vencer as suas teses, por certo que ficará melhor colocado para o conseguir, se detiver mais saber acumulado e mais poder do que aqueles que visa persuadir. Um professor de filosofia, por exemplo, terá normalmente uma relação mais próxima com a linguagem e com o raciocínio verbal do que um operário que desempenha diariamente uma actividade mais ou menos mecânica, que apela, basicamente, para a sua habilidade manual. O detentor de um alto cargo público pode usar a sua autoridade institucional e o inerente poder político para fazer passar propostas ou teses que não resistiriam a um auditório política e institucionalmente menos dependente. Nos dois casos, porém, estão presentes factores de influência manifestamente extra-retóricos, porque a retórica, como já vimos, não pode dispensar a discutibilidade e o livre exercício de um juízo crítico que permita ao ouvinte não apenas dizer que sim ao que lhe é proposto, mas, fundamentalmente, compreender a justificação das razões que fundam a tese sobre a qual lhe compete opinar ou escolher.