03 novembro 2005

Democracia por editorial

Aviso amigável: tamanho XL

1.
Há muito que acompanho o que diz António José Teixeira, agora Director do DN. Aprecio-lhe especialmente o dom de fazer parecer muito simples o que na realidade é bem complexo, o modo seguro como esclarece, informa e descodifica cada facto político e, não menos importante, o estilo sereno e sempre educado para com as diferentes personalidades a quem se refere ou dirige nos seus comentários. Some-se a tudo isto a isenção de quem não é isento (quem o é?) mas que tudo faz por o ser e aí teremos o meu comentador ideal. Estranhamente, porém, algo se alterou entretanto, ou no seu comportamento ou na minha percepção. Notei-o, pela primeira vez, naquela sua participação de há dias na Sic Notícias, num debate que integrava, além dele próprio, os também directores de jornais, José Manuel Fernandes (Público) e Inês Serra Lopes (Independente). Já aí observei uma crispação, nada habitual nele, aquando das intervenções do director do Público, ao refutar imediatamente, palavra por palavra, tudo o que José Manuel Fernandes dizia de menos agradável para a candidatura soarista, fosse de censura directa a Mário Soares ou de indirecto elogio a Cavaco Silva. A dada altura, quase dava a ideia de que se sentia na obrigação de defender o candidato Mário Soares, seu companheiro de programa no “Sociedade Aberta”. Ou se quiserem, a cada tirada mais “pró-cavaquista” de José Manuel Fernandes, contra-argumentava num registo “pró-soarista”, imitando assim o seu interlocutor naquilo que mais lhe queria criticar.

2.
Naquela altura pensei: foi apenas um momento menos feliz. Mas hoje sou levado a crer que António José Teixeira, vá-se lá saber porque razão (ou razões), terá mudado de estilo, tal o violento ataque que em nome do seu conceito de democracia
aqui desfere contra Rui Rio. Não que me pareça que Rui Rio teve uma acertada reacção ao decidir que a partir de agora só dará entrevistas escritas e sobre assuntos que (em seu entender, presume-se) tenham interesse público. Parece-me mesmo uma medida manifestamente desproporcionada à reparação do que está em causa e, ou muito me engano, ou não terá pernas para andar. Mas não se pode criticar apenas a reacção do autarca e passar uma esponja sobre a especulação ou manipulação jornalística que lhe deu origem. Ora a verdade é que, contrariamente ao que Tiago Azevedo Fernandes aqui sugere, em nenhum ponto da entrevista Rui Rio afirma que “de facto vai ter que haver construções no Parque”. O que ele diz, mais exactamente, é que “Quando digo que não há construções, estou a referir-me à especulação imobiliária. Não estou a imaginar, mas pode haver um qualquer pormenor, um remate…” e sobre o assunto nada mais acrescenta a não ser isto: “Vou dar uma resposta arriscada: admita que aparecem outros pressupostos que me levem a equacionar outro raciocínio. É evidente que para chegarmos a outra solução, tinha sempre de passar pelo maior debate que alguma vez foi feito no Porto.” O homem bem frisou: “Não estou a imaginar”. Mas o jornalista passou logo para o título que ele imaginou o que, de facto, não imaginou. O homem bem esclareceu: “pode haver um qualquer pormenor, um remate” mas o jornalista transportou para o título o termo “construções” e não o simples “pormenor, um remate” que previsivelmente não atrairia tantos leitores, mesmo sendo a única verdade. Finalmente o homem disse claramente que só equacionaria outro raciocínio se aparecessem outros pressupostos, mas o jornalista não se sentiu na obrigação de esperar por tais pressupostos e colocou no título, “preto no branco” ou melhor, “branco no preto”, que Rui Rio admite construções no Parque da Cidade. Se isto não é manipular declarações de um entrevistado o que é então?

3.
Curiosamente, António José Teixeira passa por cima de tudo isto, ou seja daquilo que, enquanto jornalista e agora também director de um jornal de referência como é o DN, talvez lhe devesse importar em primeiro lugar. Passa por cima, portanto, de um tipo de jornalismo sensacionalista que não hesita em “esticar” as declarações dos entrevistados para chamar a atenção dos leitores. Passa por cima, afinal, de um momento de jornalismo enganoso, como não ficaria mal a António José Teixeira reconhecer. Mas também percebo que, ao menos corporativamente, isso seria bem mais complicado do que vestir à pressa o jornalista de vítima e o autarca de algoz, como acabou por fazer. E é ver como o director do DN molha a pena no tinteiro da democracia só para taxar Rui Rio com “um espírito pouco democratico”, que é o que parece ter deduzido mais ou menos psicanaliticamente da preocupação do autarca em querer “controlar as interpretações das suas palavras”. É ver como ignora olimpicamente as responsabilidades dos seus colegas jornalistas mas já vê com impressionante nitidez que o “detentor de um cargo político” tem obrigações de esclarecimento dos seus concidadãos e até adita que isso pressupõe facilitar o acesso dos jornalistas às fontes.

4.
Aliás o que não faltam neste seu editorial são os pressupostos. São pressupostos e mais pressupostos como acontece sempre que não temos mais nada a que nos agarrar. Por exemplo, no seu entendimento, a liberdade de expressão própria da democracia pressuporia “circulação, interactividade, argumentação” mas já não a própria liberdade do autarca se expressar no momento, no lugar e da forma que o seu juízo político ditar, independentemente do resultado poder ou não agradar a este ou aquele jornalista ou meio de informação. Por último, temos a sua “lição” de que “Em democracia não existe a interpretação, existem interpretações” acompanhada da suspeição que lança sobre Rui Rio de “recear as suas próprias palavras e as interpretações que se possa fazer delas”. Ora se, como diz, em democracia “não existe interpretação, existem interpretações” tem aí mais uma razão para aceitar de uma vez a interpretação que o autarca fez do infeliz episódio. É esse o justo preço a pagar por quem comunga de tão “democrático” relativismo. Quanto ao receio de Rui Rio pelas outras interpretações, há que dizer que na argumentação não pode valer tudo. Só António José Teixeira parece não ter ainda percebido que as únicas interpretações de que Rui Rio tem receio (e, pela amostra, receio bem fundado) são as enganosas interpretações de alguns jornalistas. Dói, mas é a verdade.