Direito de aprender/legitimidade para ensinar
* Aviso amigável: este post pode ser maior que a sua paciência.
Se aprender é um direito de todos, quem (e quando se) detém a legitimidade (moral) para ensinar?
Foi esta a 2.ª questão avulsa que deixei na “caixa de comentários” do Conversamos e a que a Lucília Nunes, prontamente, respondeu:
aprender é um direito? diria que não. Ter as condições para aprender, para a educação, sim. Mas aprender parece-me mais do foro de cada um e assim como que um dever (apetecia-me mesmo era escrever "imperativo") ... de se melhorar, de se superar e de se desenvolver (estou a falar de adultos, claramente). Quem detem a legitimidade moral? Da forma como leio moral, responderia "aquele a quem é reconhecida"...
Hoje toca-me a mim comentar os dois pontos comuns quer à minha 2.ª questão avulsa quer à resposta da Lucília Nunes: o direito de aprender e a legitimidade para ensinar.
1) O direito de aprender:
É precisamente por estarmos a falar de adultos que considero que aprender é um direito (de todos). Um direito cujas possibilidades de exercício permanecem sempre em aberto. Porque como já escrevi, a cada um e só a cada um compete decidir sobre o grau de investimento cultural a fazer na sua auto-formação, em função de necessidades e ambições pessoais que só a si cabe definir (*). Dir-se-á, por isso, que a responsabilidade pelos êxitos ou fracassos é a justa contrapartida dessa sua liberdade. E é também por ser do foro de cada um que o aprender se constitui como direito e não como dever. Porque este vai sempre para além do próprio sujeito, isto é, o dever implica, necessariamente, o outro. É no agir consciente e respeitador da dignidade desse outro que toda a eticidade se manifesta. Fernando A. Cascais defende que “ao tu deves ético antecede sempre um tu és antropológico” (**). E de facto, antes de tudo o mais, o sujeito é, ou melhor, vai sendo o que, em grande medida, aprende. O direito de aprender surge assim como um direito natural. Sem a liberdade de escolha que lhe corresponde até a noção de dever perderia sentido. Por outro lado, o direito de aprender não só está antes como independe das “condições para aprender”. Basta lembrar que ninguém perde um direito só porque em dada altura não existem condições para o concretizar. É assim, por exemplo, com a saúde, com a imagem pessoal e com a posse. E é também assim com o aprender.
2) A legitimidade para ensinar:
Quanto à questão da legitimidade moral para ensinar, mais do que encontrar uma resposta fechada, o que parece verdadeiramente importante é conservar a pergunta. Porque esta é uma daquelas questões que valem por si mesmas, que rastreiam o perigo de se cair na falsa aparência ou, ainda pior, numa ideia fixa. A legitimidade moral para ensinar deve, por isso, constituir uma permanente interrogação do professor a si próprio. Evidentemente que não estou aqui a pensar no trivial reconhecimento da instituição académica que responde pela sua qualificação para o ensino ou até no prévio assentimento do aluno. Qualquer desses “reconhecimentos” ou “autorizações” precedem o acto de ensinar/aprender, para além de, quase sempre, corresponderem a um juízo em abstracto, mais fundado nas expectativas e nas necessidades dos destinatários do que na consideração do concreto desempenho de quem se propõe ensinar. São, além disso, uma decisão situada, que momentaneamente se diz mas que carece de ser auto-reavaliada pela vida fora. Estou a pensar, isso sim, no “processo” de ensino/aprendizagem, na relação professor/aluno, no continuum pedagógico vivo e, por vezes, conflituante, que faz e refaz as mútuas ligações de entendimento mas também de agrado, de afecto, de respeito e até de autoridade, entre quem aprende e quem ensina. Será aí que o professor ganha ou perde a legitimidade moral para ensinar? Acredito que sim. A legitimidade para ensinar vem sempre da autoridade reconhecida, nunca da autoridade imposta, ainda que por via legal. Porque se a legalidade pressupõe a legitimidade, não a esgota nem com ela se confunde. Nenhuma lei se pode sobrepor à razão nem à natureza de onde emana. A legitimidade para ensinar há-de, por isso, buscar-se originariamente na pessoa do aluno e não na lei pois, como diz Lucília Nunes, só a detém “aquele a quem é reconhecida”. E diz muito bem.
(*) Cf. Américo de Sousa, (2001), A Persuasão, Covilhã: Editora da Universidade da Beira Interior, p. 123
(**) Fernando A. Cascais, “Salvar que natureza e que homem?” in Jonas, H., (1994), Ética, Medicina e Técnica, Lisboa: Vega, p. 9
Se aprender é um direito de todos, quem (e quando se) detém a legitimidade (moral) para ensinar?
Foi esta a 2.ª questão avulsa que deixei na “caixa de comentários” do Conversamos e a que a Lucília Nunes, prontamente, respondeu:
aprender é um direito? diria que não. Ter as condições para aprender, para a educação, sim. Mas aprender parece-me mais do foro de cada um e assim como que um dever (apetecia-me mesmo era escrever "imperativo") ... de se melhorar, de se superar e de se desenvolver (estou a falar de adultos, claramente). Quem detem a legitimidade moral? Da forma como leio moral, responderia "aquele a quem é reconhecida"...
Hoje toca-me a mim comentar os dois pontos comuns quer à minha 2.ª questão avulsa quer à resposta da Lucília Nunes: o direito de aprender e a legitimidade para ensinar.
1) O direito de aprender:
É precisamente por estarmos a falar de adultos que considero que aprender é um direito (de todos). Um direito cujas possibilidades de exercício permanecem sempre em aberto. Porque como já escrevi, a cada um e só a cada um compete decidir sobre o grau de investimento cultural a fazer na sua auto-formação, em função de necessidades e ambições pessoais que só a si cabe definir (*). Dir-se-á, por isso, que a responsabilidade pelos êxitos ou fracassos é a justa contrapartida dessa sua liberdade. E é também por ser do foro de cada um que o aprender se constitui como direito e não como dever. Porque este vai sempre para além do próprio sujeito, isto é, o dever implica, necessariamente, o outro. É no agir consciente e respeitador da dignidade desse outro que toda a eticidade se manifesta. Fernando A. Cascais defende que “ao tu deves ético antecede sempre um tu és antropológico” (**). E de facto, antes de tudo o mais, o sujeito é, ou melhor, vai sendo o que, em grande medida, aprende. O direito de aprender surge assim como um direito natural. Sem a liberdade de escolha que lhe corresponde até a noção de dever perderia sentido. Por outro lado, o direito de aprender não só está antes como independe das “condições para aprender”. Basta lembrar que ninguém perde um direito só porque em dada altura não existem condições para o concretizar. É assim, por exemplo, com a saúde, com a imagem pessoal e com a posse. E é também assim com o aprender.
2) A legitimidade para ensinar:
Quanto à questão da legitimidade moral para ensinar, mais do que encontrar uma resposta fechada, o que parece verdadeiramente importante é conservar a pergunta. Porque esta é uma daquelas questões que valem por si mesmas, que rastreiam o perigo de se cair na falsa aparência ou, ainda pior, numa ideia fixa. A legitimidade moral para ensinar deve, por isso, constituir uma permanente interrogação do professor a si próprio. Evidentemente que não estou aqui a pensar no trivial reconhecimento da instituição académica que responde pela sua qualificação para o ensino ou até no prévio assentimento do aluno. Qualquer desses “reconhecimentos” ou “autorizações” precedem o acto de ensinar/aprender, para além de, quase sempre, corresponderem a um juízo em abstracto, mais fundado nas expectativas e nas necessidades dos destinatários do que na consideração do concreto desempenho de quem se propõe ensinar. São, além disso, uma decisão situada, que momentaneamente se diz mas que carece de ser auto-reavaliada pela vida fora. Estou a pensar, isso sim, no “processo” de ensino/aprendizagem, na relação professor/aluno, no continuum pedagógico vivo e, por vezes, conflituante, que faz e refaz as mútuas ligações de entendimento mas também de agrado, de afecto, de respeito e até de autoridade, entre quem aprende e quem ensina. Será aí que o professor ganha ou perde a legitimidade moral para ensinar? Acredito que sim. A legitimidade para ensinar vem sempre da autoridade reconhecida, nunca da autoridade imposta, ainda que por via legal. Porque se a legalidade pressupõe a legitimidade, não a esgota nem com ela se confunde. Nenhuma lei se pode sobrepor à razão nem à natureza de onde emana. A legitimidade para ensinar há-de, por isso, buscar-se originariamente na pessoa do aluno e não na lei pois, como diz Lucília Nunes, só a detém “aquele a quem é reconhecida”. E diz muito bem.
(*) Cf. Américo de Sousa, (2001), A Persuasão, Covilhã: Editora da Universidade da Beira Interior, p. 123
(**) Fernando A. Cascais, “Salvar que natureza e que homem?” in Jonas, H., (1994), Ética, Medicina e Técnica, Lisboa: Vega, p. 9
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