02 maio 2006

A Psicanálise vista por dentro

De todos os textos publicados na imprensa deste fim-de-semana a propósito dos 150 anos do nascimento de Freud, o meu destaque vai para o artigo da jornalista Alexandra Lucas Coelho, na "Pública" de ontem, e muito especialmente para o qualificado depoimento que recolheu de António Pinho Vargas, conhecido músico e professor universitário que, sabe-se agora, andou a deitar-se no divã 45 minutos de cada vez, várias vezes por semana, durante seis anos. É desse artigo que passo a transcrever algumas passagens (apenas os títulos são meus), por me parecerem excelentes contributos para uma mais lúcida compreensão da chamada retórica psicanalítica.


Mergulhar é difícil

"Era tratar coisas que me causavam sofrimento, mas nada que eu quisesse ocultar. Não considerei is­so um traço de menoridade." O facto de o psicanalista necessariamente já ter sido psicanalisado - requisito para o acesso à profissão - é fundamental. "Eles próprios já se colocaram naquele lugar. Não é: 'Eu sou o neurótico e ele o detentor da saúde', embora muitas vezes sejam esses os termos durante o diálogo. "Mas a ausência de embaraço, e o saber que o analista sentado por trás da sua cabeça (voz sem rosto, muitas vezes apenas "hum-hum") também já teve um analista sentado por trás da sua cabeça, não tornam mais fácil o mergulho." O início de uma análise é de extre­ma violência. Sei isso por mim e por amigos. Em quatro casos que conheço, as pessoas não aguentaram mais que dois meses, meio ano. Como eu já estava a fazer análise há certo tempo, vinham falar comigo. Por vezes, eu antecipava-­me e dizia: 'E então ele disse isto .. .''' Normalmente acertava.

A “técnica” do psicanalista

"A partir de certa altura, percebe-se o núcleo central daquele diálogo, daquela 'cura pela fala', que na verdade é um longo monólogo seguido de dois ou três comentários. Esses comentários é que têm uma técnica. O esfor­ço do analista consiste em trazer para a relação com o paciente - que é estranha, porque não nos vemos ­- aquilo que na vida de fora o incomoda. Tudo se transforma em conflito trazido para a análise. Às vezes a maneira co­mo isso é feito parece forçada, ridícula, e, a partir de certa altura, previsível." A própria dúvida em relação ao que se está a fazer é integrada. "Interpretam­-na como resistência." Para Pinho Vargas este período foi um "combate psicológico", de acordo com o que será desejo dos analistas. "A pessoa é forçada a olhar para as partes mais feias de si, a que eles chamam 'do­entes'".

Pensar algo que até aí não tinha sido pensado

"Eles [os psicanalistas] tentam estabelecer um combate interno entre partes 'saudáveis' e partes 'doentes'. Isso provoca sofri­mento. Mas também pensamento, que é o que eles pretendem. Por isso usam muito a palavra elaborar. A pessoa tem que fazer um esforço para compreender algo da sua vida ou da relação com o ex­terior, pensar algo que até aí não tinha sido pensado."Por exemplo: "O mo­mento em que senti qualquer coisa que censurei fortemente. Esse pensamento que recalcamos é trazido e elaboramos sobre a sua razão de ser."

Valerá a pena?

"Vejo a minha expe­riência de forma positiva, mas não quer dizer que tenha uma visão globalmente positiva da análise. É um conjunto de procedimentos que se aplica a seja quem for. A mim fez bem, ajudou-me a pensar, mas quando se aplica uma técnica sempre igual o lado positivo reside no paciente. Na minha análise aconteceram problemas que interpre­tei como rigidez da analista. Deram discussão violenta, com respostas dela como: 'Você põe-me a saltar da cadeira!' Eu dizia-lhe: 'No seu caso já tinha deixado esta profissão!', o que é um ataque ferocíssimo. E o vice-versa era ferocíssimo." Pinho Vargas dissuadiu, então, alguns conhecidos - por terem "uma fragilidade que não ia aguentar", ou porque "o problema era demasiado complexo e aquilo ia fazer pior" - de experimentarem.

Sem saída

"O que acontece dentro [de uma análise] é que uma pessoa se sente sem saída. Se digo que estou com sono ou me atrasei no trânsito isso po­de ser psicanalisado. Então começa-se a perceber que o melhor é entrar na as­sociação livre dos sonhos, que, sendo uma construção do inconsciente, são material propício. As melhores sessões eram aquelas em que eu levava um so­nho para contar."

Uma análise que nunca termina

E "demorou muito a compreender" que lhe cabia "pôr fim â coisa", ou seja, en­cerrar a análise. Pensou "uma ou duas vezes" na hipótese de repetir (outra análise, com outro analista) e concluiu que "não era necessário". Sendo que faz parte do que aprendeu saber que uma análise nunca termina. "Cada pessoa prossegue-a sozinha". E agora, seis anos depois de ter deixado as sessões, defende uma "lógica binocular" no confronto da psicanálise com as neurociêncías. Porque se os "médicos-médicos que confiam nos fár­macos e consideram a psicanálise uma aldrabice" são dogmáticos, também o são os psicanalistas que consideram a psicanálise como único meio para o fundo dos problemas. "Quando há um texto sagrado, e neste caso é Freud, cria-se um conjunto de exegetas que interpretam e reinterpretam e há uma ideia que cristaliza."