O maldito vício
Gostaria de poder escrever a partir de uma posição de indiferença, mas, infelizmente, não é o caso. Com grande desgosto e transtorno meu, sou ainda fumador e não sei se algum dia me conseguirei libertar deste vício, que hoje sei me foi inculcado consciente e deliberadamente pelas tabaqueiras, com a conivência e o lucro dos governos. Lamento, lamento desesperadamente, que, sendo a liberdade e a independência as minhas condições de vivência e sobrevivência, haja este maldito vício a condicionar-me em tantas situações concretas, inclusive a possibilidade de a minha opinião sobre o assunto ser suspeita de interesse próprio.
Miguel Sousa Tavares, Expresso, 17 Junho 2006
Já fumei. Muito. Muitos cigarros e durante muito tempo. Mais de vinte anos consecutivos. Nunca menos de 40 cigarros por dia. Sei por isso o que é levar o cigarro para o carro, para o gabinete de trabalho, para o café, para o restaurante, para lugares públicos, para lugares privados, para locais fechados, para locais abertos. Sei o que é o desespero de ficar sem cigarros no bolso e não ter uma loja aberta nas redondezas onde os possa comprar. Sei até da melancolia que acompanha aquele último cigarro que se fuma à noite, imediatamente antes de ir para a cama, o último, disse bem, aquele que inexoravelmente irá interromper o ciclo de prazer iniciado pela manhã, logo após o café. Sei, para abreviar, o que é o vício. O maravilhoso/horrível vício de fumar. Só por isso me atrevo também a deixar o meu testemunho. Naturalmente que, como ex-fumador.
Depois de por três vezes ter experimentado deixar de fumar, sempre com sucesso passageiro (pois ao vício acabei por regressar, mais tarde ou mais cedo), percebi o essencial: que na falta do cigarro, o vício é realmente poderoso mas em nenhum caso mais forte do que a vontade. A essa conclusão empírica juntei então uma preciosidade analítica: a ideia de que para acabar com o vício basta não fumar nunca o primeiro cigarro. Parece brincadeira, mas funciona. Aliás, funcionou. Sempre. Claro que as reacções variam de pessoa para pessoa. Mas a menos que eu seja um perfeito anormal (ideia que estou a recusar) o que se passou comigo ocorrerá igualmente com muitos outros. Penso especialmente em todos aqueles que só não fizeram ainda qualquer tentativa de acabar com o tabaco porque receiam as (muito empoladas) dificuldades que regra geral são associadas ao largar do vício.
Volto, por isso, à minha experiência pessoal para dizer que difíceis, difíceis, são os três primeiros dias de abstinência. E, contrariamente ao que se possa pensar, o primeiro nem é dos piores. Os dois seguintes custam um pouco mais. Talvez porque o primeiro dependa mais da vontade, ao passo que o segundo e o terceiro já serão um verdadeiro teste de resistência à "dependência" orgânica. Mas uma coisa é certa: passada a primeira semana sem pegar num cigarro, só volta a fumar quem quer. Foi, pelo menos, a conclusão a que cheguei, de cada uma das vezes. Inclusive, na última, quando depois de uma ampla e exigente reflexão sobre o assunto, decidi que não voltaria a fumar. Foi há cinco anos atrás e continuo tão decidido como na altura. Mais: não sinto qualquer “saudade” do cigarro, nem me incomoda que fumem à minha volta. Quando alguém me pergunta se o seu cigarro me incomoda respondo invariavelmente: “não só não me incomoda como até prefiro que seja você a fumá-lo…”. Um gracejo, claro, mas por sinal, também a mais pura verdade.
Não vejo por isso qualquer razão para o fatalismo com que Miguel Sousa Tavares se refere à sua dependência do tabaco, ao dizer, por exemplo, “ sou ainda fumador e não sei se algum dia me conseguirei libertar deste vício” ou "lamento desesperadamente, que, sendo a liberdade e a independência as minhas condições de vivência e sobrevivência, haja este maldito vício a condicionar-me (...)". Em matéria de deixar de fumar, as coisas são bem menos dramáticas do que uma certa publicidade faz crer e do que igualmente transparece das versões algo fantasistas com que muitos procuram justificar a sua falta de vontade. Fumar ou não fumar é uma decisão pessoal e livre. O que não é possível é deixar de fumar sem querer. Talvez seja até desaconselhável. Daí que se Miguel Sousa Tavares continua a fumar é porque quer. Pode acreditar: no dia em que tomar (a sério) a decisão de acabar com o vício verificará que, afinal, nunca esteve tão “condicionado” pelo cigarro como chegou a pensar.
Miguel Sousa Tavares, Expresso, 17 Junho 2006
Já fumei. Muito. Muitos cigarros e durante muito tempo. Mais de vinte anos consecutivos. Nunca menos de 40 cigarros por dia. Sei por isso o que é levar o cigarro para o carro, para o gabinete de trabalho, para o café, para o restaurante, para lugares públicos, para lugares privados, para locais fechados, para locais abertos. Sei o que é o desespero de ficar sem cigarros no bolso e não ter uma loja aberta nas redondezas onde os possa comprar. Sei até da melancolia que acompanha aquele último cigarro que se fuma à noite, imediatamente antes de ir para a cama, o último, disse bem, aquele que inexoravelmente irá interromper o ciclo de prazer iniciado pela manhã, logo após o café. Sei, para abreviar, o que é o vício. O maravilhoso/horrível vício de fumar. Só por isso me atrevo também a deixar o meu testemunho. Naturalmente que, como ex-fumador.
Depois de por três vezes ter experimentado deixar de fumar, sempre com sucesso passageiro (pois ao vício acabei por regressar, mais tarde ou mais cedo), percebi o essencial: que na falta do cigarro, o vício é realmente poderoso mas em nenhum caso mais forte do que a vontade. A essa conclusão empírica juntei então uma preciosidade analítica: a ideia de que para acabar com o vício basta não fumar nunca o primeiro cigarro. Parece brincadeira, mas funciona. Aliás, funcionou. Sempre. Claro que as reacções variam de pessoa para pessoa. Mas a menos que eu seja um perfeito anormal (ideia que estou a recusar) o que se passou comigo ocorrerá igualmente com muitos outros. Penso especialmente em todos aqueles que só não fizeram ainda qualquer tentativa de acabar com o tabaco porque receiam as (muito empoladas) dificuldades que regra geral são associadas ao largar do vício.
Volto, por isso, à minha experiência pessoal para dizer que difíceis, difíceis, são os três primeiros dias de abstinência. E, contrariamente ao que se possa pensar, o primeiro nem é dos piores. Os dois seguintes custam um pouco mais. Talvez porque o primeiro dependa mais da vontade, ao passo que o segundo e o terceiro já serão um verdadeiro teste de resistência à "dependência" orgânica. Mas uma coisa é certa: passada a primeira semana sem pegar num cigarro, só volta a fumar quem quer. Foi, pelo menos, a conclusão a que cheguei, de cada uma das vezes. Inclusive, na última, quando depois de uma ampla e exigente reflexão sobre o assunto, decidi que não voltaria a fumar. Foi há cinco anos atrás e continuo tão decidido como na altura. Mais: não sinto qualquer “saudade” do cigarro, nem me incomoda que fumem à minha volta. Quando alguém me pergunta se o seu cigarro me incomoda respondo invariavelmente: “não só não me incomoda como até prefiro que seja você a fumá-lo…”. Um gracejo, claro, mas por sinal, também a mais pura verdade.
Não vejo por isso qualquer razão para o fatalismo com que Miguel Sousa Tavares se refere à sua dependência do tabaco, ao dizer, por exemplo, “ sou ainda fumador e não sei se algum dia me conseguirei libertar deste vício” ou "lamento desesperadamente, que, sendo a liberdade e a independência as minhas condições de vivência e sobrevivência, haja este maldito vício a condicionar-me (...)". Em matéria de deixar de fumar, as coisas são bem menos dramáticas do que uma certa publicidade faz crer e do que igualmente transparece das versões algo fantasistas com que muitos procuram justificar a sua falta de vontade. Fumar ou não fumar é uma decisão pessoal e livre. O que não é possível é deixar de fumar sem querer. Talvez seja até desaconselhável. Daí que se Miguel Sousa Tavares continua a fumar é porque quer. Pode acreditar: no dia em que tomar (a sério) a decisão de acabar com o vício verificará que, afinal, nunca esteve tão “condicionado” pelo cigarro como chegou a pensar.
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