24 junho 2008

A política à luz da retórica

O "fenómeno Obama" (é assim que muitos analistas, espantados, lhe chamam) tem sido, antes de mais, um grande fenómeno verbal. O senador afro-americano do Illinois conseguiu voltar a dar à palavra o papel que ela outrora teve na política. Há anos, o poeta russo Joseph Brodsky disse que, no nosso tempo, a crise da política devia ser medida pela decadência da retórica política e o desdém perante ela. Quando De Gaulle perguntou aos franceses "querem ir dormir ou salvar a França?"; quando Churchill prometeu aos ingleses "sangue, suor e lágrimas"; quando Kennedy afirmou perante a Humanidade "somos todos berlinenses" - aqueles que os ouviram responderam com um estremecimento, um ardor, um impulso, um ímpeto. Essa retórica, "arte do discurso que persuade", tem as suas leis, que, com transtornos e metamorfoses, vinham da Antiguidade Clássica. Marc Fumaroli mostrou como a retórica é o espelho de onde uma sociedade se olha. E autores como Hannah Arendt, Barthes, Foucault, Pasolini ou Todorov escreveram sobre a relação entre retórica e democracia, oratória e totalitarismo, discurso e verdade, palavra e violência.
A estética da grande linguagem pública era a de um jogo verbal feito de setas e de alvos, de passados e de futuros, de claros e de escuros, de afirmações e de negações, de proximidades e de distâncias, de defesas e de ataques, de directas e de indirectas. Também de realidade e de imaginação, de rapidez e de lentidão, de abstracto e de concreto, do que é de cada um e do que é de todos. Depois, chegou à política a "idade da técnica" e a "era da massificação". Com a ascensão vertical dos "técnicos", dos "gestores", dos "especialistas", a linguagem política passou a ser "slogan", meta, número, "power point" e "sound byte". Rompeu-se o pacto entre a palavra, as pessoas e o mundo. Já ninguém confia nem nas promessas, nem em quem as reitera. Na era da suspeita, cada político passou a cumprir o paradoxo do mentiroso: só se acredita nele quando confessa que mentiu.
Mas "as palavras são acções", diz Wittgenstein. Nesta campanha verbal, Obama reabilitou a retórica política, dando-lhe um novo cuidado e uma nova apropriação. Foi esse o ponto de aplicação em que firmou a alavanca do seu triunfo. Ouvi-lo é voltar a ler a Retórica de Aristóteles. Ele convence porque argumenta (logos), porque emociona (pathos) e porque há um "eu" que diz "vós" e é reconhecido (ethos).


José Manuel dos Santos
"Actual",
Expresso, 21 Jun 2008