03 novembro 2008

O homem.com medo de si próprio (9)


O duplo processo de objectivação e alívio



É esta ligação profunda com os processos rítmicos, periódicos e automáticos do mundo exterior que melhor permite compreender as chamadas componentes instintivas da técnica. Em oposição ao preconceito muito generalizado, nomeadamente nos meios académicos, segundo o qual o comportamento técnico é simplesmente racional e sempre dirigido para determinados fins, Gehlen comunga do ponto de vista de Hermann Schmidt: “a objectivação do trabalho que se opera na técnica é resultante de um processo não consciente que se encontra na espécie e a sua motivação provém da parte sensorial da nossa natureza” [22]. Reforçando ainda mais a ideia destas componentes instintivas que actuam na técnica, Gehlen descreve o homem como um ser voltado para a acção, ou seja, para a modificação do seu mundo exterior, podendo o seu ciclo de acção ser analisado como contendo três etapas: movimento plástico dirigido (primeira), que é depois corrigido pela repercussão do sucesso ou insucesso (segunda) e, finalmente, a automatização como um hábito (terceira). Há, portanto, aqui como que uma implicância reactiva, que Norbert Wiener considera ser uma característica muito geral das formas de comportamento, cujo mecanismo descreve do seguinte modo: “na sua forma mais simples o princípio da implicação reactiva significa que o comportamento foi renovado nos seus resultados e que o sucesso ou insucesso destes resultados influenciará o comportamento futuro” [23].

Gehlen lembra-nos igualmente que logo de início o homem objectiva a sua acção, atribui-a ao mundo exterior, isto é, objectiva o seu trabalho. Vistas então as coisas sob este ângulo, a pedra é, sem dúvida, uma qualificada representante da mão, visto que aparece em vez desta e obtém até um êxito muito superior. Não surpreende, por isso, que Marshall McLuhan (1995) venha defender que o homem age sobre a natureza criando extensões do seu corpo, ou que Edward Hall, como mais adiante se verá, reconheça nesses “prolongamentos do seu organismo”
[24] uma marca distintiva dos restantes animais. O homem passa, assim, do pequeno ciclo do que verdadeiramente domina, para o grande ciclo do que só imaginariamente consegue antever e dominar, o que leva à diminuição do seu esforço na razão directa das massas movimentadas. Por exemplo, se o trabalho com a ferramenta é penoso, já para estabilizar o tempo (ex: o regresso da chuva), bastam algumas fórmulas verbais de mágica eficácia.

Adivinha-se então uma outra lei humana fundamental, a tendência para a diminuição do esforço, que embora possua em si mesma um valor antropológico de geral validade, será aqui analisada somente do ponto de vista das suas aplicações técnicas. Antes de mais, vislumbra-se no homem dois diferentes ciclos de acção: o pequeno ciclo de acção - correspondente à autêntica prática do trabalho que lhe reduz literalmente o esforço físico, e o grande ciclo de acção - o da magia, que evita a sua paralização perante as forças da natureza, ao reduzir, por assim dizer, as coordenadas do mundo a padrões humanos. Por outro lado, se a objectivação do trabalho humano na ferramenta produz um efeito superior ao mesmo tempo que diminui o respectivo esforço, então, como adianta Gehlen, podemos discutir o uso da ferramenta, desde logo, nesta perspectiva de alívio ou redução da penosidade físico-orgânica.
[cont.]
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[22] cit. in ibidem, p. 26
[23] ibidem, p. 27
[24] Hall, E. T., (1986), A DIMENSÃO OCULTA, Lisboa: Relógio D´Água, p. 14

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 21-22

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