O homem.com medo de si próprio (8)
No mesmo sentido vão os numerosos relatos e documentos que atestam como o intuito predominante e central das práticas mágicas é a necessidade de assegurar a uniformidade do processo natural e de estabilizar o ritmo do mundo, face às naturais irregularidades e excepções. Tudo isso parece ilustrar até onde vai o interesse humano pela uniformidade do processo natural. O que está aqui em jogo é uma necessidade instintiva de estabilidade do mundo ambiente, sendo que, “numa realidade submetida ao tempo e necessariamente mutável o máximo de estabilidade consiste numa automática e periódica repetição do idêntico, tal como aproximadamente se manifesta na natureza” [17]. E sendo assim, é natural que na primitiva concepção da vida, privada que estava de qualquer espécie de conhecimento científico, o mundo (com o homem nele integrado) fosse visto como um processo cíclico, rítmico e automático, isto é, como um automatismo, aliás, animado. Quer isto dizer que as forças mágicas que faziam mover o mundo não eram arbitrárias nem emergiam espontaneamente, antes podiam pôr-se em acção devido à fórmula certa e rigorosamente repetida.
O que pode parecer estranho é como ainda hoje, apesar de toda a racionalização e da nova concepção científica do mundo, continuamos a poder encontrar na astrologia (e afins) um importante vestígio desta ideia arcaica e inata pois “grande parte da clientela dos astrólogos é constituída por numerosos financeiros e políticos que acreditam no prodigioso automatismo rotativo das estrelas e na sua necessária correlação com os destinos do indivíduo” [18]. Faz todo o sentido, por isso, perguntar: até que ponto essa crença estará tão profundamente enraizada no homem para nele se manter, apesar de todos os desmentidos da razão?
Se alguma ideia se pode retirar daqui, é, seguramente, a de que a fascinação pelo automatismo constitui o impulso pré-racional e estratégico da técnica. Um impulso que se fez sentir primeiramente e durante milénios na magia (ou técnica supra-sensível) até encontrar nos tempos modernos a sua máxima concretização nos relógios, motores e máquinas rotativas de toda a ordem. Este “fascínio do automatismo de uma máquina é totalmente independente do seu rendimento: em grau mais alto, o que se pretenderia seria um perpetuum mobile cuja fidelidade e rendimento consistisse apenas na reprodução do próprio movimento giratório” [19].
Sucede que uma fascinação de tal natureza não pode ser simplesmente intelectual, tem de ter raízes mais profundas e, segundo Gehlen, constitui, por assim dizer, um fenómeno de ressonância. Constantemente aprisionado ao enigma da existência e do seu próprio ser, o homem tem de ir buscar a sua auto-interpretação a um não-eu, a algo diferente do humano. Assim, a sua auto-consciência é indirecta e o seu esforço por encontrar uma fórmula para si próprio decorre sempre em relação com o não-humano do qual se separa, em seguida. Ele sempre se sentiu muito impressionado pelos processos rítmicos e periódicos, quer se tratasse da rotação dos astros ou dos hábitos rotineiros e estereotipados dos animais. E isto não é de estranhar pois ele próprio é um automatismo: “é pulsação e respiração, vive dentro e por intermédio de automatismos rítmicos de apropriado funcionamento, tal como estão patentes no movimento do andar, mas sobretudo, na lide e trabalho das mãos, no ‘círculo de acção’ que, partindo da coisa para a mão e para os olhos, se fecha voltando de novo à coisa, em contínua repetição”[20]. No fundo, fascina-o tudo quanto no mundo exterior de algum modo se assemelhe a essa estrutura própria. E ainda hoje, falar de curso dos Astros ou do andamento das máquinas traduz-se, ao fim e ao cabo, numa “objectivação por ressonância da auto-interpretação de determinados traços essenciais do homem” [21], pois este interpreta o mundo em função da imagem que tem de si próprio e interpreta-se a si, segundo as imagens que forma ou recebe do mundo.
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[17] Gehlen, A., (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 24
[18] idem
[19] ibidem, p. 25
[20] idem
[21] ibidem, pp. 25-26
Etiquetas: A retórica da técnica
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