12 janeiro 2009

O homem.com medo de si próprio (11)


O advento do automatismo

Mas se a técnica chegou tarde a tais domínios, a verdade é que, pelo menos nos últimos tempos, o fez com uma pujança assinalável. Tudo começou com as incríveis novas possibilidades abertas pela automação, onde se objectiva o próprio ciclo de acção incluindo as funções intermediárias conscientes, de controlo e direcção. Como diz Gehlen, objectiva-se simultaneamente “a parte do processo vital fisiológico que funciona sob a forma de processos cíclicos sensório-motores e a outra de nível superior em que se produzem as regulações retransmitidas automaticamente, quimicamente, por exemplo” . Surgem assim os aparelhos de regulação técnica por transmissão, com base no princípio de que o sistema não varia o seu funcionamento por um comando exterior, mas sim, em função dos resultados obtidos. Trata-se de mecanismos concebidos para regressarem sempre a si próprios num ciclo fechado e calculados de tal modo que a corrente que atravessa todo o sistema é desviada numa ínfima parte para a regulação dessa mesma corrente de energia.

Gehlen acentua porém que este ciclo regulador não é apenas uma cópia do ciclo de acção, pois além das acções humanas, diz, existem em nós inúmeras regulações intracorporais obedecendo ao mesmo princípio estrutural, como no caso do sistema que regula a tensão sanguínea que é um ciclo fechado de acção regressiva. O ritmo respiratório, a concentração do sal, o doseamento do açúcar no sangue e a temperatura do nosso corpo, são apenas mais alguns exemplos dos inúmeros estados biológicos que obedecem ao mesmo princípio regulador.

Apesar de todas estas semelhanças entre o autómato e o orgânico, não se pode dizer, como adverte Gehlen, que o ciclo de regulação técnica permite conhecer a própria vida, nem subentender que esta última seja de natureza mecânica. Verifica-se tão somente a existência de uma isomorfia. Uma semelhança de formas, por certo, mas nenhuma igualdade substancial. O que se passa é que com o progresso da técnica o homem transfere para a natureza inanimada (aparelhagem técnica criada pelo próprio homem) um princípio de organização que já vigora em diversos pontos do seu organismo. E, como mais adiante se verá, a transferência deste princípio para a natureza inanimada e exterior ao homem, veio a revelar-se tão revolucionária e eficaz que acabou por se aplicar a ele próprio. Basta lembrar a série de extensões artificiais (próteses dentárias, oculares, mamárias, cardiológicas, locomotoras, etc.) que, cada vez mais, parecem aproximar o homem de hoje de um futuro homem protésico. É natural, portanto, que João Dias de Deus considere que “os nossos sentidos são hoje muito mais que os nossos sentidos: estão cheios de verdadeiros ‘implantes’ tecnológicos” [27] . (cont.)

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[27] J. D. Deus, (2003), DA CRÍTICA DA CIÊNCIA À NEGAÇÃO DA CIÊNCIA, Lisboa: Gradiva, p. 94


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 24

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