06 janeiro 2004

Excertos de um livro não anunciado (164)

(...) Pensamos que nesta sua concepção de auditório universal Perelman não resistiu ao “assédio” da razão objectiva (ainda que numa versão fortemente mitigada) que tanto critica em Descartes. Basta atentar nesta breve passagem do seu Tratado da argumentação: “É por se afirmar o que é conforme a um facto objectivo, o que constitui uma asserção verdadeira e mesmo necessária, que se conta com a adesão daqueles que se submetem aos dados da experiência ou às luzes da razão” (1). Facto objectivo? Que valor de universalidade pode ser atribuído a este conceito ao mesmo tempo que se reconhece que “não contamos com nenhum critério que nos possibilite, em qualquer circunstância e independentemente da atitude dos ouvintes, afirmar que alguma coisa é um facto”? (2) Luzes da razão? Mas quem apela à razão, como diz Thomas Nagel, “...propõe-se descobrir uma fonte de autoridade em si mesmo que não é meramente pessoal ou social, mas antes universal - e que deverá também persuadir outras pessoas que estejam na disposição de a ouvir” (3). Ora este modo de descrever a razão, como o reconhece o próprio Nagel, é de nítida inspiração cartesiana ou platónica (4). O mínimo que se pode dizer, portanto, é que Perelman não explicitou com suficiente clareza esta sua noção de auditório universal, quer enquanto instância normativa da argumentação, quer como critério do discurso convincente. Tal como a apresenta, quer no "Tratado da Argumentação", quer no "Império Retórico" ou na "Retóricas", fica-nos, aliás, a impressão de que, movido pela louvável preocupação de conferir à retórica um cunho marcadamente filosófico, dela terá exigido mais do que a mesma poderia dar. (...)


(1) Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca, L., (1999), Tratado da Argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, p. 35
(2) Ibidem, p. 76
(3) Nagel, T., (1999), A Última Palavra, Lisboa: Gradiva-Publicações, Lda, p. 12
(4) Ibidem