Pessoalização global
*Dedicado ao Pedro Caeiro
Alguns amigos fisicamente mais distantes - e em especial, os meus amigos brasileiros - pedem-me que deixe aqui algumas notas sobre como correu a apresentação do meu livro “O homem com medo de si próprio". É evidente que não posso deixar de satisfazer tão simpáticas manifestações de curiosidade e interesse, que, aliás, muito me honram, mas antes, delas gostaria de retirar as duas seguintes ilacções.
A primeira é a de que a globalização electrónica, não se limita, afinal, a proporcionar uma cada vez maior massificação de contactos, onde tendencialmente ninguém repara em ninguém e em que o “outro” surge fundamentalmente como emanação abstractizante de uma multidão de “outros” sem rosto e sem nome, pela ordem natural das coisas e da vida tão “genéricos” ou tão “iguais” que, à excepção do seu relevo estatístico, para nada e para ninguém parecem contar.
Pelo contrário. O que o interesse manifestado por estes meus amigos parece mostrar, é que a comunicação através do blogue tanto pode ser de ordem geral ou abstracta, como muito particular e concreta. Seria, portanto, um erro crasso, catalogá-la como forma de comunicação empobrecida ou, mais grave do que isso, empobrecedora, quando comparada com a que decorre em ambiente real, nomeadamente, no “face-to-face”. Porque se é verdade que o blogue não substitui a co-presencialidade física dos interlocutores, o facto é que alarga incrivelmente as nossas possibilidades de convivência social e humana (como, de resto, já acontecera com o não menos virtual telefone).
A minha segunda ilacção é a de que me posiciono na blogosfera de modo muito divergente, quiçá antagónico, daquela “impessoalidade” de que falou Pacheco Pereira, em tempos, no seu Abrupto. De facto, no blogue ou fora dele, a mim o que o que me interessa é contactar com pessoas concretas, que sei que existem como tal independentemente do nosso contacto ser apenas via electrónica ou digital, pessoas que, de uma maneira ou de outra, partilham comigo esta vida e este mundo, numa caminhada comum.
Mais: no blogue ou fora dele, quando me dirijo a alguém estou forçosamente a pessoalizar o que digo, pois, como se sabe, a interlocução não se compadece com mensagens deixadas no ar, a não ser por razões estilísticas. Tenho, por isso, necessidade de “antecipar” o meu interlocutor, imaginando para que tipo de pessoa estou a escrever, que tipo de vida levará, qual a sua qualificação profissional, cultural ou académica, o grau de profundidade que terá sobre o assunto e muitos outros detalhes ou atributos, tantos quantos fazem com que uma pessoa seja realmente a pessoa que é, e não qualquer outra.
Quer isto dizer que a pessoalização no virtual fica dependente do conhecimento da pessoa física, no chamado “mundo real” ou só com este último se completa? Não. Diria até que “viver” na blogosfera ou na net é muito diferente do viver na chamada “sociedade real”. Tão diferente que pode até levar a que duas ou mais pessoas convivam sem problemas de maior ao nível do relacionamento virtual-blogosférico e no entanto, depois de se conhecerem pessoalmente, deixem de sentir a empatia ou admiração mútua que aqui tanto as tinha aproximado. E isto, entre outra razões, porque há incompatibilidades temperamentais que permanecem mais ou menos camufladas pelo “virtual” mas adquirem uma súbita visibilidade quando o relacionamento passa a ocorrer fora do computador.
Por aqui se vê que a pessoalização de que falo - a pessoalização no virtual - pode mesmo conviver, sem grandes ondas, com o próprio anonimato já que, a meu ver, a identidade de cada um não começa nem termina na divulgação do seu nome. Funda-se, isso sim, na sua personalidade, no seu comportamento habitual, naquilo que de uma forma continuada e estável mostra ser. Identidade blogosférica ou virtual é então, sobretudo, uma individualidade. Não já este ou aquele nome, mas esta ou aquela pessoa, ou, para ser mais exacto ainda, um certo pensamento, que todos temos legitimidade de interpretar ou intuir.
Mas não é também assim que desde sempre seleccionamos os nossos amigos, no real?
Creio que é. A prova é que, quando na passada quinta-feira, a certa altura um dos presentes no Auditório Municipal de Gondomar se volta para mim e diz: “Américo: eu sou o Pedro Caeiro”, a estranha sensação que tive foi a de que estava a falar de viva voz com um amigo, um grande amigo, que apenas “já não via há muito”. E no entanto, nunca nos tínhamos encontrado antes, a não ser... nos blogues. Digam lá agora que a pessoalização blogosférica é pura ficção. Obrigado, Pedro.
Alguns amigos fisicamente mais distantes - e em especial, os meus amigos brasileiros - pedem-me que deixe aqui algumas notas sobre como correu a apresentação do meu livro “O homem com medo de si próprio". É evidente que não posso deixar de satisfazer tão simpáticas manifestações de curiosidade e interesse, que, aliás, muito me honram, mas antes, delas gostaria de retirar as duas seguintes ilacções.
A primeira é a de que a globalização electrónica, não se limita, afinal, a proporcionar uma cada vez maior massificação de contactos, onde tendencialmente ninguém repara em ninguém e em que o “outro” surge fundamentalmente como emanação abstractizante de uma multidão de “outros” sem rosto e sem nome, pela ordem natural das coisas e da vida tão “genéricos” ou tão “iguais” que, à excepção do seu relevo estatístico, para nada e para ninguém parecem contar.
Pelo contrário. O que o interesse manifestado por estes meus amigos parece mostrar, é que a comunicação através do blogue tanto pode ser de ordem geral ou abstracta, como muito particular e concreta. Seria, portanto, um erro crasso, catalogá-la como forma de comunicação empobrecida ou, mais grave do que isso, empobrecedora, quando comparada com a que decorre em ambiente real, nomeadamente, no “face-to-face”. Porque se é verdade que o blogue não substitui a co-presencialidade física dos interlocutores, o facto é que alarga incrivelmente as nossas possibilidades de convivência social e humana (como, de resto, já acontecera com o não menos virtual telefone).
A minha segunda ilacção é a de que me posiciono na blogosfera de modo muito divergente, quiçá antagónico, daquela “impessoalidade” de que falou Pacheco Pereira, em tempos, no seu Abrupto. De facto, no blogue ou fora dele, a mim o que o que me interessa é contactar com pessoas concretas, que sei que existem como tal independentemente do nosso contacto ser apenas via electrónica ou digital, pessoas que, de uma maneira ou de outra, partilham comigo esta vida e este mundo, numa caminhada comum.
Mais: no blogue ou fora dele, quando me dirijo a alguém estou forçosamente a pessoalizar o que digo, pois, como se sabe, a interlocução não se compadece com mensagens deixadas no ar, a não ser por razões estilísticas. Tenho, por isso, necessidade de “antecipar” o meu interlocutor, imaginando para que tipo de pessoa estou a escrever, que tipo de vida levará, qual a sua qualificação profissional, cultural ou académica, o grau de profundidade que terá sobre o assunto e muitos outros detalhes ou atributos, tantos quantos fazem com que uma pessoa seja realmente a pessoa que é, e não qualquer outra.
Quer isto dizer que a pessoalização no virtual fica dependente do conhecimento da pessoa física, no chamado “mundo real” ou só com este último se completa? Não. Diria até que “viver” na blogosfera ou na net é muito diferente do viver na chamada “sociedade real”. Tão diferente que pode até levar a que duas ou mais pessoas convivam sem problemas de maior ao nível do relacionamento virtual-blogosférico e no entanto, depois de se conhecerem pessoalmente, deixem de sentir a empatia ou admiração mútua que aqui tanto as tinha aproximado. E isto, entre outra razões, porque há incompatibilidades temperamentais que permanecem mais ou menos camufladas pelo “virtual” mas adquirem uma súbita visibilidade quando o relacionamento passa a ocorrer fora do computador.
Por aqui se vê que a pessoalização de que falo - a pessoalização no virtual - pode mesmo conviver, sem grandes ondas, com o próprio anonimato já que, a meu ver, a identidade de cada um não começa nem termina na divulgação do seu nome. Funda-se, isso sim, na sua personalidade, no seu comportamento habitual, naquilo que de uma forma continuada e estável mostra ser. Identidade blogosférica ou virtual é então, sobretudo, uma individualidade. Não já este ou aquele nome, mas esta ou aquela pessoa, ou, para ser mais exacto ainda, um certo pensamento, que todos temos legitimidade de interpretar ou intuir.
Mas não é também assim que desde sempre seleccionamos os nossos amigos, no real?
Creio que é. A prova é que, quando na passada quinta-feira, a certa altura um dos presentes no Auditório Municipal de Gondomar se volta para mim e diz: “Américo: eu sou o Pedro Caeiro”, a estranha sensação que tive foi a de que estava a falar de viva voz com um amigo, um grande amigo, que apenas “já não via há muito”. E no entanto, nunca nos tínhamos encontrado antes, a não ser... nos blogues. Digam lá agora que a pessoalização blogosférica é pura ficção. Obrigado, Pedro.
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