22 maio 2005

Lusa manipulação

O Provedor do Jornal de Notícias trouxe à edição de ontem o caso de uma inacreditável manipulação jornalística levada a cabo pela Agência Lusa. A coisa parece ter sido tão grosseira que chega a lembrar o que por cá se passava noutros tempos e que, pelos vistos, continua a ser o pão nosso de cada dia por estas longínquas paragens. Mas vamos aos factos:


Tudo começa com uma notícia do Público, no passado dia 14, sob este título:

"PJ investiga empreendimento viabilizado por Sócrates e Capoulas"

Importante: segundo o Provedor do JN, da notícia do Público apenas se podia concluír que Sócrates estava a ser investigado por eventual tráfico de influências, e que dessa investigação não havia ainda conclusões.

Nesse mesmo dia (desconhece-se se por iniciativa própria ou a pedido dos respectivos visados), a Polícia Judiciária torna público um comunicado sobre o assunto, que é difundido pela Lusa com o seguinte título:

"PJ sem provas contra Sócrates no caso 'Nova Setúbal'"

Neste seu comunicado a PJ nega que existam "quaisquer elementos que permitam concluir" pela existência da "prática de um crime de tráfico de influência imputável aos visados na notícia" sem desmentir, contudo, a notícia da investigação em curso. Aliás, nem o poderia ter feito pois, como muito certeiramente deduz o Provedor do JN, "para a PJ dizer que não há indícios da prática de um crime é porque existe ou existiu investigação".

Percebo perfeitamente o incómodo e até a revolta de quem vê o seu nome publicamente associado a uma investigação deste género e, por outro lado, questiono-me mesmo sobre a noticiabilidade do assunto. Também não posso deixar de estranhar a coincidência temporal da notícia do Público com as investigações que decorrem noutros quadrantes político-partidários. Mas isso são contas de outro rosário. O que aqui está em causa é antes um tipo de manipulação jornalística que só pode descredibilizar quem a ele recorre. Como foi o caso da Lusa quando, pouco depois de ter difundido o comunicado da PJ distribuiu uma correcção na qual mantinha o corpo da notícia, mas alterava o seu título para:

"PJ nega investigação a Sócrates no caso 'Nova Setúbal'"

Ou seja, em duas penadas, a Lusa ousou "corrigir" o próprio comunicado da PJ e fê-lo aditando-lhe a falsa informação de que a PJ negara a própria investigação, quando o comunicado não lhe fazia sequer a menor referência. O Provedor do JN chama-lhe "trapalhada mediática" mas o seu particular modus faciendi parece remeter-nos para uma falha bem mais grave. Porque é bom de ver que não se tratou de um vulgar lapso de urgência. A Lusa, aliás, começou por transmitir a verdade (no primeiro título) só a degradando precisamente na versão mais demorada (segundo título). Daqui até à conclusão de que foi um erro deliberado pode ir uma distância tão pequena que não falte quem a percorra e, nesse caso, em se tratando da maior agência de notícias de Portugal e de língua portuguesa, é quase inevitável que surjam as habituais especulações sobre a instrumentalização governamental.

Mas era só o que nos faltava que numa altura em que duas cadeias de televisão públicas russas são fortemente criticadas por darem um lugar priveligiado aos discursos do presidente Vladimir Putin tívessemos por cá uma agência noticiosa que chega ao ponto de corrigir o comunicado de uma instituição como a Polícia Judiciária só para defender o bom nome de membros do Governo. O mínimo que se pode exigir é que a Lusa dê publicamente a mão à palmatória e explique a que se ficou a dever este seu tao censurável atropelo da objectividade jornalística. Está em jogo a sua própria credibilidade.

Adenda:
É verdade que o JN "embarcou" na manipulação da Lusa quando, no dia seguinte, noticiou igualmente a não existência de uma investigação sobre o assunto. Mas aí, não só haverá a atenuante de ter confiado na agência noticiosa, como o próprio erro foi prontamente admitido pela respectiva editora de Política. E se no jornalismo um erro é, por princípio, sempre indesejável, também o saber reconhecê-lo é meio caminho para evitar a sua repetição, para além de traduzir a dignidade profissional de quem o assume. Foi o caso.