Judeu no Auditório Municipal de Gaia
Companhia: Teatro Experimental do Porto
Local: Auditório Municipal de Gaia
Representações: até ao próximo dia 9, mas só de quarta a sábado (21,30) e domingo (16 h)
Peça: ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA (O JUDEU)
Autor, cenógrafo e encenador: Norberto Barroca
*
No passado sábado desloquei-me ao confortável Auditório Municipal de Gaia para assistir a mais um excelente espectáculo de teatro criado por Norberto Barroca, desta vez para comemorar os trezentos anos do nascimento do Judeu.
A representação abrange cenas de três das mais representativas peças daquele que é, cada vez mais, considerado como um dos nossos maiores comediógrafos de sempre:
- VIDA DO GRANDE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA
- GUERRAS DO ALECRIM E DA MANGERONA
- ESOPAIDA OU A VIDA DE ESOPO
Norberto Barroca recorre ainda ao Judeu, de Bernardo Santareno, para melhor nos fazer recordar António José da Silva e alguns aspectos da sua vida e da sua morte na fogueira, vítima da inquisição, por ser judeu.
A alta qualidade da representação fica a dever-se a um grupo de bons actores de onde sobressai João M. Mota (quer no papel de António José da Silva quer, muito especialmente, como Esopo) e também o versátil Hugo Faria.
Como ponto mais alto deste espectáculo destaco a cena final da morte na fogueira, onde os efeitos de luzes e de som reconduzem o espectador à intensidade dramática dos momentos que a terão antecedido e que deste modo tão impressivo e realista para sempre ficaram registados pelo historiador José Pereira Tavares:
A 16 de Outubro de 1736, antes da audiência da tarde, isto é, cerca das catorze horas, foi notificada a ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA a sentença que o condenava. Em seguida, os guardas ataram-lhe as mãos e entregaram-no a um religioso da Companhia de Jesus, da qual geralmente se tiravam para esta ocasião os confessores, a fim de ele o exortar ao arrependimento, confortar no transe e acompanhar até ao momenhto do suplício. Por muito que de seu íntimo repelisse os consolos de uma crença que talvez nessa hora mais do que nunca lhe seria odiosa, o condenado não podia recusá-los, para que não fosse trocada a pena, relativamente misericordiosa, da asfixia, pelo martírio longo da fogueira. Assim, acompanhado do padre, e ladeado de um familiar da Inquisção, algum fidalgo, porventura o mesmo que o prendeu, na manhã de 18 de Outubro, dia festivo para o povo de Lisboa, por ser domingo e por ver nele castigar os inimigos da Fé, transpôs ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA a soleira dos Estaus, caminhando para a morte. Mais dez infelizes, relapsos cinco, três confessos e dois negativos, faziam com ele a turma destinada ao verdugo, em que entravam três mulheres. De Sambenito vestido, vestido trágico onde em pintura viam seus supostos retratos, desenho rude de uma cabeça sobreposta a tições acesos; por sombreiro a carocha, a sinistra carapuça, adornada de chamas; de vela nas mãos presas, pés descalços, seguiam em fila os condenados à morte atrás de um grande crucifixo, donde o Cristo, virado para eles, dizem uns chamava a si os contritos, segundo outros, dando-lhes as costas, os abandonava como rebeldes. Sobre este particular é mudo o regulamento. Antes deles e além do crucifixo tinha passado a procissão dos que recebiam penas leves. Entre esses, homens 21, mulheres 25, ANTÓNIO JOSÉ veria, ao subir ao tablado, no claustro de S. DOMINGOS, onde se realizava a solenidade , seu irmão ANDRÉ, sua mãe e sua mulher. (...) Na assistência, D. JOÃO V e seus irmãos, os infantes D. FRANCISCO e D. ANTÓNIO, o herdeiro da Coroa D. JOSÉ, e o infante D. PEDRO; a corte por seus homens mais representativos; centenas de espectadores, muitos a quem as facécias do comediógrafo tinham chamado a riso, e agora a sua desgraça não tiraria uma lágrima. Triunfal cortejo para a coroação de um vate, diria ele entre si, se em causa própria tinha fácil ironia. Simplesmente um caso de demência colectiva, com por fundamento a crueldade humana. Horas demorava a cerimónia do auto, com o sermão obrigatório, a leitura das sentenças, e a abjuração dos que pela primeira vez delinquiam. Ouviu o condenado impôr a LOURENÇA COUTINHO e a LEONOR CARVALHO as penas de cárcere e arbítrio; ambas com a vida salva e livres, porque a pena de cárcere era a liberdade condicional, e na maioria dos casos de mera ficção jurídica. Já de noite, finda a solenidade, o conduziram à Relação, em frente, no palácio antigo dos Condes de Almada, e, ouvida a sentença dos juízes da coroa, ao Campo da lã, depois do Terreiro do Trigo, lugar das execuções. (*)
(*) Cf. programa da organização.
Local: Auditório Municipal de Gaia
Representações: até ao próximo dia 9, mas só de quarta a sábado (21,30) e domingo (16 h)
Peça: ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA (O JUDEU)
Autor, cenógrafo e encenador: Norberto Barroca
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No passado sábado desloquei-me ao confortável Auditório Municipal de Gaia para assistir a mais um excelente espectáculo de teatro criado por Norberto Barroca, desta vez para comemorar os trezentos anos do nascimento do Judeu.
A representação abrange cenas de três das mais representativas peças daquele que é, cada vez mais, considerado como um dos nossos maiores comediógrafos de sempre:
- VIDA DO GRANDE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA
- GUERRAS DO ALECRIM E DA MANGERONA
- ESOPAIDA OU A VIDA DE ESOPO
Norberto Barroca recorre ainda ao Judeu, de Bernardo Santareno, para melhor nos fazer recordar António José da Silva e alguns aspectos da sua vida e da sua morte na fogueira, vítima da inquisição, por ser judeu.
A alta qualidade da representação fica a dever-se a um grupo de bons actores de onde sobressai João M. Mota (quer no papel de António José da Silva quer, muito especialmente, como Esopo) e também o versátil Hugo Faria.
Como ponto mais alto deste espectáculo destaco a cena final da morte na fogueira, onde os efeitos de luzes e de som reconduzem o espectador à intensidade dramática dos momentos que a terão antecedido e que deste modo tão impressivo e realista para sempre ficaram registados pelo historiador José Pereira Tavares:
A 16 de Outubro de 1736, antes da audiência da tarde, isto é, cerca das catorze horas, foi notificada a ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA a sentença que o condenava. Em seguida, os guardas ataram-lhe as mãos e entregaram-no a um religioso da Companhia de Jesus, da qual geralmente se tiravam para esta ocasião os confessores, a fim de ele o exortar ao arrependimento, confortar no transe e acompanhar até ao momenhto do suplício. Por muito que de seu íntimo repelisse os consolos de uma crença que talvez nessa hora mais do que nunca lhe seria odiosa, o condenado não podia recusá-los, para que não fosse trocada a pena, relativamente misericordiosa, da asfixia, pelo martírio longo da fogueira. Assim, acompanhado do padre, e ladeado de um familiar da Inquisção, algum fidalgo, porventura o mesmo que o prendeu, na manhã de 18 de Outubro, dia festivo para o povo de Lisboa, por ser domingo e por ver nele castigar os inimigos da Fé, transpôs ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA a soleira dos Estaus, caminhando para a morte. Mais dez infelizes, relapsos cinco, três confessos e dois negativos, faziam com ele a turma destinada ao verdugo, em que entravam três mulheres. De Sambenito vestido, vestido trágico onde em pintura viam seus supostos retratos, desenho rude de uma cabeça sobreposta a tições acesos; por sombreiro a carocha, a sinistra carapuça, adornada de chamas; de vela nas mãos presas, pés descalços, seguiam em fila os condenados à morte atrás de um grande crucifixo, donde o Cristo, virado para eles, dizem uns chamava a si os contritos, segundo outros, dando-lhes as costas, os abandonava como rebeldes. Sobre este particular é mudo o regulamento. Antes deles e além do crucifixo tinha passado a procissão dos que recebiam penas leves. Entre esses, homens 21, mulheres 25, ANTÓNIO JOSÉ veria, ao subir ao tablado, no claustro de S. DOMINGOS, onde se realizava a solenidade , seu irmão ANDRÉ, sua mãe e sua mulher. (...) Na assistência, D. JOÃO V e seus irmãos, os infantes D. FRANCISCO e D. ANTÓNIO, o herdeiro da Coroa D. JOSÉ, e o infante D. PEDRO; a corte por seus homens mais representativos; centenas de espectadores, muitos a quem as facécias do comediógrafo tinham chamado a riso, e agora a sua desgraça não tiraria uma lágrima. Triunfal cortejo para a coroação de um vate, diria ele entre si, se em causa própria tinha fácil ironia. Simplesmente um caso de demência colectiva, com por fundamento a crueldade humana. Horas demorava a cerimónia do auto, com o sermão obrigatório, a leitura das sentenças, e a abjuração dos que pela primeira vez delinquiam. Ouviu o condenado impôr a LOURENÇA COUTINHO e a LEONOR CARVALHO as penas de cárcere e arbítrio; ambas com a vida salva e livres, porque a pena de cárcere era a liberdade condicional, e na maioria dos casos de mera ficção jurídica. Já de noite, finda a solenidade, o conduziram à Relação, em frente, no palácio antigo dos Condes de Almada, e, ouvida a sentença dos juízes da coroa, ao Campo da lã, depois do Terreiro do Trigo, lugar das execuções. (*)
(*) Cf. programa da organização.
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