21 julho 2005

Excerto de um livro não anunciado (248)

Até aqui, no entanto, temos vindo a encarar a possibilidade da retórica degenerar em manipulação, unicamente segundo a óptica do agente manipulador, ou seja, daquele que joga com as palavras para intentar uma adesão acrítica às suas propostas. Mas a verdade é que numa situação de manipulação para além do manipulador existe sempre o manipulado. Poderemos isentar este último da sua quota de responsabilidade na manipulação de que é alvo? Não haverá sempre a possibilidade de se descobrir e desmontar a manipulação em causa? Ou será que o encanto de um certo modo de dizer as coisas, de oferecer as respostas como únicas e aparentemente irrebatíveis, é algo de tão subtil ou sedutor que justifica o anestesiamento e aceitação passiva por parte de um auditório?

Tentar responder a estas questões significa antes de mais deslocar a raiz problemática do ethos, vontade de seduzir ou manipular, para o pathos, ou seja, para a aceitação mais ou menos consciente da respectiva manipulação. A pertinência deste deslocar do problema, do orador para o auditório, está bem presente em Meyer, quando, depois de lembrar uma vez mais que a diferença entre a retórica negra e a retórica branca reside numa diferença de atitude, nos vem dizer que a verdadeira questão é a de saber porque é que os homens se deixam manipular, às vezes de forma perfeitamente deliberada e consentida:

(...) A mulher sabe que tal homem procura seduzi-la e que o que ele diz remete para um desejo que seria brutal e inaceitável exprimir francamente. O espectador sabe igualmente que este ou aquele produto não tem forçosamente as qualidades celebradas na publicidade e que é apenas a vontade de vender que se exprime (...). Tratando-se de discurso figurado, não deveria existir um espaço de liberdade na interpretação e aceitação, espaço que se cria e permite aos receptores pronunciar-se sobre o que é proposto sem ter de dizer brutalmente que não? Não existirá na sedução, qualquer que ela seja, uma etapa suplementar que, retardando a resposta final, retarda a recusa eventual, e portanto a rejeição de outrem enquanto tal? Não existe como que uma espécie de delicadeza de alma na figuratividade, um respeito que permite evitar sem combater, recusar sem negar? Tudo leva a crer que a manipulação consentida assenta numa dupla linguagem que não engana, e mesmo de que se tem necessidade para diferir a decisão própria sem ter de enfrentar directamente o outro. Um grau mais de liberdade, se se quiser, na qual só os ingénuos verão uma traição à verdade una e indivisível, de que os receptores da mensagem seriam vítimas involuntárias (*).


(*) Meyer, M., "As bases da retórica", in Carrilho, M. (org.), Retórica e Comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 69