24 agosto 2005

Anversos & Reversos

Agradeço ao Paulo Cunha Porto o facto de ter comentado com toda a pertinência o meu post Economia da atenção e do agrado. O que vou dizer a seguir, a nada responde. É pura reflexão. Mas não nego o propósito de uma sintonia retórica comum.

A Retórica do ponto de vista da recepção:

Embora os versos de Arroyo - que fui buscar ao O Misantropo Enjaulado - se dirijam notoriamente para o "emissor" cumpre-me esclarecer que é à recepção contemporânea que me refiro no aludido post. Logo, quando lá digo que é preciso retórica e persuasão digo-o ainda, sob o ponto de vista dessa mesma recepção. Não se trata, assim, de invocar a retórica como o caminho mais eficaz para "obrigar" alguém a pensar como nós, mas antes, de reconhecer que muitas vezes (quase sempre, diria...) precisamos que nos chamem a atenção, que nos agradem, mesmo antes de concluirmos se o que têm para nos dizer é ou não verdadeiro ou minimamente interessante.

Eis porque quando escrevo "Daí que se dê cada vez menor atenção ao outro" me queira referir ao outro que nos interpela, que nos rouba um tempo e uma atenção cada vez mais limitados, só porque acha que tem algo para nos dizer. É, portanto, tambem esse outro que precisa de recorrer à retórica e à persuasão se connosco pretende comunicar, mais ainda, se nos pretende convencer. E ai dele se não tiver o engenho de nos atrair a atenção e o interesse. A sensibilidade ao agrado é um traço constitutivo do humano a que nenhum ser dotado de razão parece escapar. Por isso a Retórica se mostra especialmente apta para nos persuadir e não só para persuadir os outros como, na maior parte das vezes, tende a ser apresentada. É, digamos assim, o seu anverso-reverso funcional. Mas evidentemente que, encarada a Retórica desta perspectiva democrática (porque recíproca e igualitária), cai por terra a teoria da dita manipulação retórica ou, pelo menos, carece de total reformulação. Modesto contributo nesse sentido é o que sobre o assunto escrevi no meu livro "A Persuasão-Estratégias da comunicação influente".

A desigualdade dos interlocutores:

Sim, comungo das mesmas preocupações que o Paulo Cunha Porto, no que toca aos possíveis interlocutores demasiado "permeáveis ao aparecimento do novo" e sem o necessário espírito crítico para resistir a pressões discursivas racionalmente fraudulentas. Mas como já escrevi (ver Excerto de um livro não anunciado (253), o que isso configura é uma desigualdade socio-cultural tão exterior à Retórica como a qualquer outro uso corrente da palavra. Já se sabe que, regra geral, a ignorância não premeia ninguém. Mesmo um cidadão que apenas saiba ler e escrever já dispõe de um saber/poder (ao menos, linguístico) que lhe pode conferir apreciável vantagem sobre aquele que é rigorosamente analfabeto. Que fazer, então? É claro que será sempre possível reclamar do Estado e dos sucessivos Governos políticas mais eficazes para se atenuar tais desigualdades mas já não se poderá obrigar ninguém a fazer um investimento cultural superior ao que só a própria pessoa tem legitimidade e liberdade para definir. E o que mais há por aí é gente que não quer saber mais do que sabe e que foge do mínimo esforço mental como quem foge do diabo. Não será então justo que a tanta liberdade corresponda uma responsabilidade pessoal pelos seus êxitos ou fracassos? Convenhamos que na vida, tal como na medalha, tudo parece ter, afinal, o seu anverso-reverso.


Nota:
A ideia de que a publicidade é um jurado inimigo da retórica e da persuasão, "porque seu concorrente desleal" é tão interessante que merece maior desvendamento. Noutra ocasião, claro...