06 novembro 2005

O que é a manipulação jornalística?

1.
Poder-se-ía simplesmente dizer que estamos perante um caso de manipulação sempre que haja violação do disposto no n.1 do já anteriormente referido Código Deontológico do Jornalista. Mas isso seria confundir o plano normativo do exercício do jornalismo com a sua dimensão ético-epistemológica que, como é sabido, nenhum código de procedimentos totalmente recobre ou aprisiona. Além disso, do ponto de vista axiológico interessa mais, neste caso, descobrir o que não se deve fazer em jornalismo do que inventariar apenas o que o código deontológico ou a própria lei não permitem. Nada feito, portanto. É melhor seguir por outra via. Mas pensando bem, o que se passa com a manipulação é, em grande medida, o que se passa em relação à própria verdade. Sabemos que se deve fugir da primeira e buscar a última, mas em nenhum caso chegaremos a tocar uma ou outra, na sua máxima expressão. E isto, para além de ser inconcludente, remeter-nos-ia para uma labiríntica pesquisa filosófica dos fundamentos últimos da manipulação. Talvez fosse muito interessante…mas não temos tempo.

2.
É nestas alturas que a lógica faz muito jeito. Tomemos, por exemplo, a noção de falácia. O que é uma falácia? Ainda que com alguma incompletude pode dizer-se que a falácia é um argumento inválido ou um raciocínio errado sendo que este último ocorre, como se sabe, quando se retira uma dada conclusão de premissas que nem lógica nem pragmaticamente a suportam, pouco importando se o erro é intencional ou não (1). Ora a falácia, como já se adivinha, é a verdadeira matriz da manipulação discursiva. Em ambos os casos, incorre-se no mesmo atropelo lógico que deu à luz o título do JN a que me venho referindo, e onde, para todos os efeitos, se anunciou uma conclusão que nenhuma das premissas (contidas no texto) autorizaria.

3.
Evidentemente que no que concerne a este caso do JN, sempre se poderá contrapor que embora o título não tenha sido o mais rigoroso, ainda assim 1) não afirmava propriamente o contrário daquilo que Rui Rio disse 2) não continha um elevado grau de divergência em relação às declarações do entrevistado e 3) mantinha até alguma proximidade semântica com o que era afirmado na entrevista. Logo, nestas condições só por manifesto exagero se poderia falar de manipulação jornalística. Mas o ponto é que esses são, como veremos, requisitos da própria falácia e, por consequência, também da manipulação. Ou seja, para que estejamos perante uma falácia, não basta que o argumento seja inválido, é preciso também que possua uma aparência de validade.

4.
É essa aparência de validade que transforma um erro de raciocínio num raciocínio falacioso. Porque se o erro for demasiado notório é lógico que por todos será detectado. A falácia é então tanto mais perigosa quanto mais se assemelha a um argumento válido. E o mesmo se diga da manipulação jornalística. Só há manipulação jornalística quando o raciocínio é aparentemente correcto. É o caso do raciocínio subjacente ao título do JN. Parece correcto, mas não é. Logo, independentemente do maior ou menor grau de intensidade, estamos perante um caso de evidente manipulação. Numa palavra: a reconhecida necessidade do título jornalístico atrair a atenção do leitor não legitima que se sacrifique o direito do leitor a uma informação isenta e rigorosa.

(1) Embora alguns autores distingam entre falácia e sofisma, reservando este último para quando há intenção de enganar, concordo com Desidério Murcho quando afirma que a distinção é irrelevante para a compreensão da argumentação.