10 dezembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (270)

Há por isso que fazer uma distinção que, além de se revestir da maior importância para a compreensão do fenómeno da manipulação na retórica, parece vir confirmar a perspectiva que aqui vimos assumindo e que outra não é, senão a de se considerar que a responsabilidade por tal manipulação deve ser repartida e co-assumida pelo manipulador e pelo manipulado. É que uma coisa é a mentira, outra, o engano. Se há engano, é porque houve mentira, mas – e este é o ponto que pretendemos salientar – da mentira não tem que, obrigatoriamente, decorrer o engano. Mentir é um propósito, uma intenção. Enganar é algo mais, é obter o resultado ou o efeito intentado. A mentira é do foro do mentiroso. O engano está sobe a jurisdição do enganado. O mentiroso pode mentir sempre, mas só engana quando alguém se deixa enganar. Há sempre, portanto, uma divisão de responsabilidades na manipulação da retórica e, de modo algum, aquele que escuta pode furtar-se ao ónus de detectar as possíveis transgressões ou rupturas do contrato de sinceridade que torna possível tanto a retórica como, afinal, toda e qualquer outra forma de comunicação. Como diz Lozano, “que a mentira possa supor uma ruptura do contrato fiduciário corresponde unicamente à vontade do destinatário ou à sua interpretação, sempre regida pelo ‘crer’ que é, não em vão, uma modalidade ‘subversiva’, já que se pode crer tanto no possível como no impossível, no verdadeiro como no falso. E, porque não, também na mentira”(*).

(*) Jorge Lozano, "La mentira como efecto de sentido", in Carlos Castilha del Pino, (Org.), (1998), El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, p. 140